Quem paga as contas (Maternidade Invisível 10)
Alerta de spoiler! Quem paga as contas, no fim das contas, é sempre a mãe. Primeiro pelo motivo mais evidente de que o trabalho de cuidar do filho e da casa do filho é grátis, não-remunerado, voluntário, quase escravo. Segundo porque tudo o que dá errado com o filho, ou com a casa, é culpa dela. Joãozinho demorou para desfraldar porque a mãe não comprou penico nem elevação de assento; pegou recuperação porque a mãe não ajudou na tarefa de casa; cresceu reprimido porque a mãe não o deixava falar e se expressar livremente. A casa está precisando de pintura, a máquina de lavar estragou, o vaso sanitário entupiu; a mãe que ainda não chamou o profissional responsável. A mãe é quem faz todo o investimento no desenvolvimento do filho e na manutenção da casa, mas, em vez de obter renda, só acumula dívida.
A mãe está sempre devendo para a sociedade o cumprimento de todas as expectativas do que aquele pequeno, médio ou adulto ser humano deve vir a ser e fazer, quando e como. Se deve ficar com ela desempregada, o que não é mais uma opção bem vista hoje, se deve ficar com a avó que mora longe, com a babá ou na escola, a partir dos 4 meses ou dos 4 anos. Se é cedo ou tarde para ele parar de mamar, de usar fraldas ou de fazer xixi na cama. Se suas roupas estão manchadas, puídas e rasgadas. Se seu cabelo está cortado ou caindo no rosto. Se ele está agressivo com outras crianças. Toda dívida cai na conta investimento da mãe, e o que deveria lhe gerar rendimentos, gera só para ele e para a sociedade que contará com mais um proletário. Que talvez desacate o chefe ou seja péssimo no que faz, obviamente por culpa da mãe.
Já os lucros pela produção daquele jovem proletário, possível futuro marido e pai de outro proletário, ficam com ele mesmo, principalmente se for do sexo masculino como Joãozinho. Se aprendeu a andar e falar cedo, foi a genética. Se aprendeu a se despir e fazer xixi no penico, é um garoto muito esperto. Se vai bem na escola, é inteligente. Se é desenvolto e se porta bem socialmente, é da sua personalidade. Se toca vários instrumentos e vai bem nos esportes, é talentoso. Ou, pior de tudo: é porque puxou o pai.
O pai em uma família judaico-cristã de classe média alta pode ser alguém que divida as contas financeiras ou até as assuma em maior proporção que a mãe. Seja uma mãe que trabalhe em tempo integral, parcial, ou uma que trabalhe não remuneradamente como, por exemplo, cuidando do filho, da casa, e tentando se restabelecer profissionalmente talvez porque deseje, talvez porque queira garantir sua independência financeira, talvez porque não lhe reste outra opção para pagar, ou, no caso, dividir igual ou desigualmente as contas.
Mesmo trabalhando, mesmo recebendo remuneração superior à do pai, algo improvável já que mulheres recebem 34% a menos que os homens em cargos de liderança no Brasil, a mãe sempre estará em dívida. Tem o pai que trabalha menos horas, recebe mais e acaba tendo mais tempo para lides domésticos, mas não mais tempo que a mãe. Tem o pai que trabalha igual, mas tem uma empresa que a qualquer momento pode se dar mal, apesar de sempre ter ido muito bem nos últimos 20 anos, enquanto a mãe tem cargo vitalício, para quem então tudo é mais fácil, pois garantido, devendo ela se dedicar mais à família do que ele. Tem pai cuja hora de trabalho é muito alta, por isso muito mais preciosa que a hora de trabalho precária da mãe, que então tem que investir o que seria tempo para sua vida profissional nos cuidados com a família e assim compensar o fato de ser uma pobre coitada cuja hora de trabalho – remunerado e não-remunerado – vale pouco. E tem, claro, a típica família brasileira, constituída apenas pela mãe e pelos filhos: quando recebe alguma pensão ou auxílio do pai das crianças, é para pagar um pão e uma garrafa de leite por mês.
Recentemente fez-se um cálculo de quanto vale o serviço de uma mãe em tempo integral e se chegou à soma de R$ 7.392, tendo como referência os mínimos salários e honorários previstos por lei. Foram calculados turnos de babá, trabalhadora doméstica para faxina, lavagem de roupas e preparo das refeições, folguista e motorista para levar a criança em seus compromissos médicos, escolares, etc. Não foi calculada, no entanto, a gestão familiar ou, termo mais adequado à realidade materna, a “sobrecarga mental”: aquelas coisas que mãe adora fazer quando o filho finalmente dorme e ela tem “tempo livre”, que é comprar fraldas, roupas, calçados, brinquedos, remédios e demais necessidades do filho; ou roupa de cama, toalhas, tinta para a parede mofando, veneno de formigas, utensílios domésticos que estragaram, isto é, as necessidades de manutenção do lar.
Tampouco foi calculado nesse valor os fins de semana, os feriados, as férias, as noites interrompidas por despertares noturnos da criança e as madrugadas passadas em claro e com os ouvidos aturdidos com o choro constante do bebê. Não foi calculado tratamento para dor nas costas de tanto carregar o filho ou para depressão por se sentir solitária. Não foi calculado o complexo multivitamínico necessário para mantê-la de pé, nem a vitamina D garantindo seu olhar de aconchego e seu sorriso cheio de paciência para seu filho. Não importa o quão acabada esteja.
Não foi calculado o preço do medo de se ver completamente sozinha em casa, sem mais contar com o marido dividindo desigual ou igualmente as contas e os cuidados das crianças, com um vazio no currículo profissional que excede os 6 meses de licença maternidade permitido por lei e a pressão de se virar sozinha fazendo qualquer trabalho já que seu tempo, de toda forma, tem pouco ou nenhum valor.
Afinal de contas, quem mandou ser mãe? Agora paga a conta.