Puerpério I (Maternidade Invisível 13)
Antes de engravidar, achei lindo quando minha amiga se intitulou como “puérpera”. Pensei em púrpura, purpurina, pueril, próspera e até em borboleta. Através dela descobri esse termo usado para ex-gestantes durante uns 40 a 60 dias após o parto, como fosse um status jurídico. Só depois, grávida, que aprendi que se trata de um acontecimento fisiológico e hormonal complexo, que mexe profundamente com a saúde e as emoções da mãe. Curiosa e com um pouco de medo do que iria acontecer comigo, fiquei à espera. Passados dois meses, concluí que meu puerpério tinha sido quase imperceptível, como meus períodos menstruais, que quase nunca me causaram cólicas ou TPM. Achei que tinha sido um puerpério físico: meus órgãos voltaram aos seus respectivos lugares, minha barriga diminuiu, a vulva cicatrizou. Inclusive depois de um mês já menstruei. Uma vez só.
Na internet despontam várias explicações parecidas para o período do puerpério. Duas se alinham bastante com minha percepção (ou falta de percepção) do que me ocorreu em dois meses após o parto: seria o período “até que os órgãos reprodutores da mãe retornem ao seu estado pré-gravídico”, no qual “o corpo da mulher trabalha para voltar ao estado que estava antes da gravidez”. Os dois são corretos e ao mesmo tempo equivocados e precários. O corpo da mãe jamais voltará ao seu estado anterior. Porém, de fato, ele trabalha por muito tempo de forma improdutiva acreditando e tentando cegamente voltar ao que era. Talvez muitas mães sigam o resto de suas vidas nessa tentativa.
Para muitas mães, esse puerpério do senso comum e cientificamente comprovado representa um período muito difícil e pesado, que frequentemente leva a quedas bruscas de vários hormônios, principalmente de progesterona e estrogênio. As flutuações hormonais podem ocasionar o famoso baby blues, uma mistura de cansaço e de emoções como tristeza, irritabilidade e ansiedade, e em casos mais graves a depressão pós-parto e a rejeição ao próprio filho. Por isso meu medo na espera do puerpério, porque algo desconhecido e incontrolável aconteceria em meu corpo.
De fato, aconteceram coisas desconhecidas e incontroláveis em meu corpo, na verdade sempre desde que existo, mas mais visivelmente desde a concepção de meu filho. Quem está grávida “não precisa mostrar, a barriga sempre aparece”, costuma dizer minha minha mãe me orientando a não me gabar de minhas conquistas. Mas a maior parte da gravidez, assim como do puerpério e da maternidade como um todo, não aparece quase nunca. A leve laceração só minha obstetra viu. O sangue do útero jorrando por dias, só eu e minhas calcinhas absorventes. O sangue saindo da boca do bebê de três dias enquanto berrava aos prantos ao ter seu frênulo lingual cortado por uma dentista pediátrica sem experiência que parecia mais uma açougueira, só ela, eu e o pai vimos.
Muitas outras mudanças não se fazem visíveis, como a dor da laceração por um mês ou a dor ao amamentar, aguentada por três meses até ceder à consultoria de amamentação, na qual foi identificada candidíase – essa sim visível, confirmada pela obstetra por foto de Whatsapp – e a permanência de um boa porção do frênulo da língua do bebê, que após dois anos ainda o impede de mamar com a boca inteira e me impede de amamentar sem incômodo. Visível apenas por especialistas da saúde.
Muitas mães não conseguem, não podem, não querem amamentar. Muitas conseguem e amamentam até os seis anos de idade da criança, mesmo com incômodo ou dor. Enquanto relato minha experiência me martelam frases como “mas você que quis ter filho, achou que seria fácil?” ou “está reclamando de barriga cheia, pois a maioria das mulheres passa por situações muito piores”. E nenhuma das situações é visível até que a mãe seja internada por depressão pós-parto ou algum tipo de surto. O que não é tão frequente, já que com a maternidade vem uma força inigualável de transpor os próprios limites, dores e necessidades, em nome da sobrevivência de outro ser muito mais vulnerável e frágil.
Mudanças emocionais no puerpério talvez tenham um fundo fisiológico, hormonal. Mas muito mais decisivo para o bem estar da mãe e do bebê nesses primeiros dias após o nascimento é o ambiente em que vivem, além da maturidade da mãe e dos demais familiares para lidar com, ou sobreviver, nele. Não ter rede de apoio é muito difícil do ponto de vista pragmático e principalmente para evitar a exaustão física e mental da mãe, por um lado. Por outro, ela se exaure menos com constantes palpites e críticas alheias à sua forma de cuidar do filho, que é único, e não igual a outros filhos de outras pessoas. Mas, mesmo não convivendo com familiares e amigos tóxicos, a mãe vive e foi criada em uma sociedade patriarcal machista que invisibiliza, despreza seu papel tanto materno quanto feminino. Os julgamentos a atacam constantemente, mesmo que não sejam ouvidos durante a maternidade, mas, muito antes, em sua juventude por seus pais, avós, tios. Ou julgamentos que nem mesmo tenham sido proferidos diretamente.
Você ainda não voltou a trabalhar? Você já voltou a trabalhar?
Ele já vai para a escola? Ele ainda não vai para a escola?
Ele ainda mama? Ele já parou de mamar?
É demasiado doloroso e solitário conviver com a inutilidade e a própria incompetência em um trabalho que, em princípio, foi uma escolha, e que exige muito mais que dedicação exclusiva, devoção e sacrifício. A mãe sacrifica suas necessidades mais profundas de acolhimento, descanso, liberdade, prazer, reconhecimento, em prol de uma causa considerada vã. Pior: considerada vaidade sua. Por pura vaidade, esse desejo tolo de colocar um filho no mundo, ela inventou de engravidar com, ou sem, um pai que deve ser também maluco para entrar na onda dela, abrir mão de sua liberdade e arcar com os custos adicionais de uma criança. Pai que, diferente dela, tem escolha de fazê-lo ou não.
Mimimis de mãe à parte, sob uma perspectiva psicológica, o puerpério dura, na verdade, em torno de dois anos. Dois anos, ou os chamados “mil dias”, de adaptação da mãe e do bebê ao novo mundo, mundo cheio de injustiças, mas também repleto de belezas que ambos aprendem e reaprendem a enxergar juntos. Para mim, a maior dor do puerpério é sentir meu filho aos poucos desbravando o mundo sem mim. Aquele ser que só conseguiu vir ao mundo através das minhas entranhas agora anda sozinho, comunica o que quer, aprende palavras, brincadeiras e cantigas que eu não conheço. Aquele ser que era parte de mim, agora troca comigo coisas que são só dele e coisas que são só minhas. Aos poucos, deixamos de ser um bebê que depende de cuidados constantes e uma mulher que abdica de si para garantir sua sobrevivência, para nos tornarmos parceiros na jornada de descoberta da vida.