Repetição (Maternidade Invisível 2)

 In essays

Eu costumo dizer que tenho alergia à repetição. Me atrai a novidade; quando a novidade cai na mesmice, quando já sei do que se trata, começo a espirrar, a produzir secreção no nariz e em vias respiratórias que nem sei que tenho. Não consigo pedir o mesmo prato de outra pessoa no restaurante porque seria mesmice; seria perda de uma oportunidade de experimentar algo novo ou diferente.

Certa vez me perguntaram quais meus hábitos rotineiros. Custou-me muito encontrar um, para além de hábitos básicos de higiene como escovação de dentes e banho antes de dormir, que foi o de tomar café com leite ao acordar. Este era inclusive meu hábito para a escrita; tomava o café com leite em frente ao computador com a página do Word branca ou já rasurada em minha frente. À mesma época, frequentei uma terapeuta holística colombiana na periferia de Berlim que apontaria minha aversão a respeitar os ritmos naturais da vida; de meu próprio corpo. E da natureza. Foi então que passei a valorizar a escutas dos pássaros na janela ao acordar, ou melhor, ao ficar na cama pela manhã. Desejei louvar o ritmo da natureza coincidindo o meu próprio com ele; algo que nunca de fato logrei.

Foi então que, grávida, descobri que, ao contrário do que imaginava, eu não deveria necessariamente acatar todos os sinais dados pelo bebê como, por exemplo, de ele querer mamar o tempo inteiro ou de simplesmente deixá-lo dormir a qualquer momento, seguindo seu próprio ritmo. Não: as psicologias, pediatrias e pedagogias, neurociências e astrologias dizem, hoje, que o bebê precisa de uma rotina – não para sobreviver, mas para compreender e se sentir seguro no novo mundo que habita. Um mundo tanto de seres humanos com horários pré-estabelecidos de trabalho, lazer, escola, soneca, descanso, quanto um mundo de ciclos da natureza ocorrendo a cada 24 horas, 28 ou 365 dias.

Desde que nasceu, Amaro foi conduzido a distinguir, na prática, os movimentos humanos incessantes do dia dos movimentos mais sutis que ocorrem à noite, quando as estrelas sobem ao firmamento e a maioria dos adultos em nossa latitude apaga sua consciência. Fecha a cortina, diminui volume sonoro e de iluminação, dá banho relaxante, canta músicas e faz atividades calmas, de preferência massagem shantala, mas não com óleo de coco, pois escorrega e meleca o bebê recém banhado. E reza. Reza para que ele entenda logo que já é hora de bebê dormir e de fato durma pontualmente, isto é, logo.

Para a mãe alérgica a repetições, ai que bênção seria poder contar com algumas. Que benção seria garantir a(s) (diversas) hora(s) em que o bebê vai dormir e acordar à noite, bem como durante o dia. Repetição na maternidade significa, para o bebê, segurança; para a mãe, tranquilidade. Segurança do bebê de saber que em um mundo completamente desconhecido, no qual tudo é novidade e causa dor, fome ou cansaço, cada evento ou objeto familiar já vivenciado repetidas vezes traz bálsamo e aconchego. Tranquilidade da mãe de pensar possível prever o próximo dia ou as próximas horas sem surpresas de fraldas vazadas, madrugadas passadas em claro por saltos de desenvolvimento, dias em que o bebê não consegue mais mamar com gengiva inchada de dentes despontando.

Uma vez alcançada a tranquilidade, ou marasmo, que a repetição garante, consegue-se perceber suas nuances. O bebê acorda todo dia cheio de energia e tira soneca três horas depois. Acorda depois de 1 ou 2 horas, almoça e se enche de energia para brincar o resto do dia. Brinca, brinca, brinca. Conto as horas para a noite chegar e ele dormir de novo. Nos dias mais exaustivos, parece que passo o dia esperando pela repetição desse momento. Na verdade, passo o dia na expectativa da repetição do que já conheço, o que me permite relaxar, mas também da novidade que me traga um estímulo de seguir – e sair de – essa rotina.

É só em tantas repetições rotineiras que posso perceber o gradual desenvolvimento da linguagem de Amaro: as sílabas que ele repete desde os 4 meses de idade “mamamamamá”, que adquiriram fonações nasais específicas do português brasileiro ou nhengaatu “mãmãmã” aos 6 meses, que se tornaram palavra, “mamãe”, meses depois. É só na repetição que posso perceber que ele, que antes derrubava tudo com os braços, passou a ser capaz de pegar coisas com o “movimento de pinça” dos dedos polegar indicador, de entender o movimento de abre e fecha de potes e garrafas, de empilhar coisas e separá-las em recipientes; de me imitar fazendo comida ou lavando a louça. De me imitar. De repetir o que eu faço. De repetir o que eu faço da sua própria maneira.

De repetir: de cair na mesmice, como eu, minha mãe, minha avó. De maneira única.

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