Pré-fascistas vs. Pós-fascistas (Choques Culturais 5)
– Atenção: contém escatologias políticas –
Cheguei na Alemanha em 2006; pouquíssimo tempo após a queda de Hitler e do muro de Berlim. Era o ano da copa do mundo nesse país que, alguns anos antes, sediara uma olimpíada proibindo seus atletas judeus de competir. Cientes das proibições, os outros 48 países participantes cogitaram boicotar a olimpíada, mas no fim mudaram de ideia para não perder a oportunidade de colecionar medalhas. Aquele boicote teria sido uma chance de conscientizar o mundo sobre as ainda recentes práticas alemãs de violação de direitos humanos, evitando a expansão do Nazismo que levaria à segunda guerra mundial e ao holocausto.
Logo de minha chegada, ficou evidente que as atrocidades totalitárias – tanto da perseguição e sistemática exterminação de milhões de seres humanos, quanto de sua subsequente separação; amputação de seus laços familiares através de um muro – tinham acabado de ocorrer. Foi por um triz que me escapei delas. Mesmo assim, é difícil imaginar o que tais atrocidades significaram para quem de fato as testemunhou. Entre amigos alemães, é comum iniciarem esse assunto após horas de conversa. Compartilham vivências de infância e seu “parentesco” com o nazismo: todos os avôs da minha geração de amigos foram soldados na segunda guerra. Um clima de constrangimento aflige a todos, especialmente a mim, que não tenho experiência no assunto. E apesar do constrangimento, da vergonha, do desconforto de ter convivido e amado avós coniventes, quando não operadores daquelas brutalidades, o tema inesperadamente é trazido à tona.
Certo dia, quis saber mais intimamente de uma amiga alemã se sentia vergonha ou culpa em relação ao nazismo. Ela desconcertou-se, enrubesceu, não conseguiu responder. Preferiu retrucar: “Como é para você? Não tem vergonha das crueldades cometidas por teus antepassados durante a escravidão?” Respondi-lhe que não havia vivenciado aquilo, já que a escravidão se passara antes da terceira geração de minha família. É verdade que sou branca e descendente de alemães pelo lado paterno, e que tenho um bisavô português no lado materno. Certamente nenhum deles foi escravo. Fato é que nunca houve interesse em traçar nem contar a história de minha família, muito menos de sua parte não-europeia.
Na cultura pós-fascista alemã – diferente da italiana – o passado cruel foi ainda ontem. É um passado tão onipresente que enjoa: por qualquer rua que se caminhe na Alemanha se encontra um monumento, uma placa no chão ou na entrada de uma casa, evidenciando o horror do passado não apenas como algo importante, mas urgente de lembrar. Em salas de concerto de Weimar, faz-se um minuto de silêncio pelos mortos no campo de concentração de Buchenwald, localizado a oito quilômetros de distância. É tanto nazismo para lá e para cá que às vezes dá vertigem e vontade de vomitar. Sim, de vomitar. Pois digerir a violência sem escrúpulos acometida a tantos seres humanos não é fácil, nem mesmo para aqueles que não a vivenciaram.
Para mim foi fácil lidar com o passado da escravidão de meu país, já que não tive que lidar com ele; nem em forma de presente, nem de passado recente ou longínquo. Para mim foi fácil lidar com o passado da ditadura no Brasil, apesar de sua presença durante meu primeiro ano de vida. Para mim é fácil lidar com os milhares de mortes nas favelas do Brasil, apesar de acontecerem hoje, diariamente. O presente e passado de violência atroz de meu país foram e seguem sendo de tal maneira velados e normalizados que não é preciso os digerir nem regurgitar.
É apenas no momento em que apontam uma arma na minha cara que encaro a violência como realidade, sendo obrigada a engoli-la, por sorte sem tiros, goela abaixo. Só que o criminoso foge e o policial duvida de meu relato – fato verídico –, acusando-me de ter inventado a história. De ter inventado a história que no Brasil houve tortura, ditadura, escravidão. De inventar, fantasiar, que no Brasil existe extrema violência, racismo, misoginia, homofobia, que existe fascismo e xenofobia. Fobia do outro, fobia do xenófobo, fobia do que pensa diferente, ou que aparentemente nem pensa. Após anos engolindo tanta violência e tanta indiferença à violência – física e simbólica, como se as crises do país fossem algo ocasional e passageiro – é natural que se anseie por um herói com soluções simples.
Não é que os alemães ainda ontem, há oitenta anos atrás, não pensassem. Pelo contrário, eles pensavam na humilhação, deportação e execução de judeus como uma solução muito lógica, e um grande alívio, para os problemas nacionais que lhe causavam medo, desespero e fome. Vomitavam seu medo e raiva nos outros para se saciar. O mesmo se pode dizer dos brasileiros: eles pensam. Pensam rapidamente, no momento em que nem o pobre criminoso, nem os vizinhos, nem a polícia, nem os políticos lhe acodem ao sofrer uma violência, que a única maneira de a extinguir é com as próprias mãos. Ou com a mão de ferro de uma ditadura militar ou de um império colonial, cujas consequências irreparáveis nunca foram conscientizadas nem boicotadas, digeridas nem vomitadas – até agora.
A diferença agora é que o mundo inteiro está consciente e boicota a iminente permissão, por grande parte da população, de que tais consequências voltem a ser legítimas. Só os brasileiros que não, metralhando no peito sua medalha nacional.
Excelente…tinha mesmo que ser publicado. Sorry