Petichismo (não confundir com petechismo)
Eu adoro animais: são curiosos, exóticos; têm uma maneira peculiar de ser, andar e se comunicar. Também adoro animais domésticos; sempre tive. Cheguei a ter aquário, calopsitas, hamsters, dois cachorros e quatro gatos, não apenas ao mesmo tempo e no mesmo apartamento, como sobre minha cama de solteiro, que também incluía a mim. Foi só aos vinte que descobri sofrer de rinite alérgica; cresci com os bichos e com ela sem sabê-la defeito de fábrica. Animais nascem com defeito de fábrica. Alguns são de fato fabricados em laboratório, cruzando raças distintas para unir suas qualidades mais desejáveis – bom faro, astúcia, pelo longo e dourado – e eliminar as malquistas – pelo curto, orelhas compridas, bactérias produtoras de sebo.
Chego no Brasil e me deparo com os tais “pets”. Imediatamente associo a palavra onipresente à quantidade interminável não apenas de garrafas pet consumidas sem pudor em pleno verão tropical, mas também ao uso indiscriminado de saquinhos plásticos em lojas e supermercados. Um saquinho para cada item comprado, seja para um outro saco com quatro rolos de papel higiênico ou para uma escova de dente. Saquinho que pode, por sua vez, ser reaproveitado na manutenção de algo não eliminável dos pets, e que eles acabam distribuindo pelas ruas em proporções similares às garrafas pet.
Eu me pergunto se o petichismo é um fenômeno tipicamente brasileiro, e se, em caso afirmativo, se relaciona com o petechismo (também grafado como PTchismo). Mais do que uma polarização de visões políticas, parece que o que vivemos atualmente é uma autopromoção de identidades individuais. Já não é questão de direita ou esquerda, nem de gostar de azul ou de rosa. É questão de vestir uma camisa com minha frase motivacional favorita, tatuar no braço o desenho que marcou minha vida e levar no pescoço as letras do meu nome. É questão de me auto-hashetaguear no Instagram e no Twitter. É questão de “ligar o foda-se” não como rebeldia frente às normas sociais que nos reprimem, mas em afronta a qualquer norma e pessoa, pois eu sou e posso o que quiser, na hora que quiser, da maneira que quiser. É o fetichismo da própria personalidade; um auto-fetichismo.
E o que isso tem a ver com os pets, além de curiosamente se assemelharem muito aos seus donos? Os pets são esses bichinhos fofinhos que todo mundo curte e compartilha nas redes sociais. Que só de olhar nos sentimos acariciados. Que mesmo aqueles que nunca gostaram de animais de estimação acabam adotando. Afinal, eles são tão fofos e obedientes; fazem suas necessidades no local demarcado; comem a mesma ração todo dia sem reclamar; abanam o rabinho e nos festejam a toda hora, mesmo depois de uma bela xingada. Estão sempre ali quando queremos, dispostos a nos enaltecer com suas lambidas e dependência emocional-fisiológica a qualquer momento. E no momento que não precisamos, eles ficam presos na areazinha do apartamento ou no “pet stop” da loja.
Interessante que em inglês pet também significa mimar. Só não fica claro no verbo intransitivo direto quem mima quem: se o dono ao pet, ou o contrário. Se é o dono que mima o cachorrinho comprando ração vergânica com lactobacilos vivos que preservam a flora intestinal do bichinho, ou se o bichinho com a doação de sua liberdade e felicidade em prol da satisfação do dono garantindo sua alimentação, ainda que sob risco de um ou outro tapinha na fuça. Tendo em conta que os castigos nunca atingem os donos, podemos concluir que estes sejam os mimados nessa intensa relação de amor e servilismo.
É bom ter pet porque, além de sua fofura nos render diversas curtidas, eles não nos confrontam. No máximo se negam a ficar na pose que queríamos exibir num post. Eles nos garantem todo o carinho e interação emocional que já não temos com pessoas, tão ocupados estamos postando fotos dos pets. A interação que já não temos com nosso meio ambiente, sem perceber que seguimos a destruí-lo gravemente a cada saquinho plástico e garrafa pet. A interação que não temos com o vizinho, por seus muitos defeitos de fábrica, dentre os quais não concordar comigo nem assistir à mesma série Netflix – quanto menos me obedecer abanando o rabo. A relação que evitamos construir com o outro, pois está cada vez mais difícil encontrar alguém com as mesmas frases motivacionais e tatuagens que as minhas.
Pessoas vêm com defeito de fábrica; apresentam personalidades cheias de diferenças. Cheias de vontades, desejos, medos, dores e odores. Como os pets, só que com agravantes: têm opinião, ambições, livre-arbítrio, se rebelam contra opressões e injustiças, e, o que é pior: têm ego. Nenhuma dessas características malquistas, diferente de muitas caninas, é eliminável. Tão somente ignorável no âmbito do meu apartamento, do meu carro e da minha tela de celular, onde só cabe o meu próprio ego e aquele que o lambe: meu devoto pet.