Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil (Maternidade Invisível 5)

 In essays, society

Quando adolescente, eu dormia muito na casa da minha prima. Lembro de despertar de madrugada com o barulho de meu primo ainda bebê chorando e minha tia indo ao seu quarto diversas vezes até ele se levantar definitivamente junto com a luz do sol. Com olheiras cada vez mais profundas, minha tia se levantava, trocava a fralda de seu filho, quando não os lençóis da cama cheios de xixi vazado, preparava e oferecia-lhe o mingau, limpava sua cadeira, mesa, o chão, a boca de meu primo, que espalhava o mingau por tudo. Minha tia dava-lhe água e vitamina, escovava seus dentes, passava nosso café, guardava a louça do dia anterior e lavava a nova louça, arrumava a cama, vestia-se (de uma forma sempre meio bagunçada) e escovava seus próprios dentes enquanto cuidava para o bebê não cair nem quebrar nada, abria as janelas da casa, alimentava o cachorro, tirava o lixo cheio de fraldas, regava as plantas, organizava a mochila para a creche. Ao final, ficava brincando com meu priminho com toda a calma e amor do mundo, até meu tio aparecer e levá-lo para a creche.

Até hoje me recordo do cheiro gostoso que a mágica aparição de meu tio exalava: de banho tomado, cabelos secando ao vento, vestido cada vez com uma camisa mais charmosa, ele surgia brilhante, altivo, como um verdadeiro herói. Como tivesse asas, sempre saía voando, com muita pressa, pois sua missão de salvar o mundo o aguardava. Ele sempre estava muito ocupado; era até síndico do condomínio. Eu não tinha ideia do que isso significava, mas achava mesmo assim incrível. Não escondo que sentia tamanha admiração por ele; às vezes parecia apaixonada e até sentia certa inveja de minha prima, que podia cheirar seu aroma fresco todas as manhãs. Da minha tia sentia ciúmes; ela que já não era tão bonita como quando se casaram na juventude e nem se arrumava mais direito.

Além dos ciúmes, comecei a nutrir um pouco de raiva de minha tia e perceber que ela não merecia aquele herói. Eu, no lugar dela, beijaria aquele homem lindo com toda a minha paixão e gratidão todos os dias, tanto quando ele saísse, como quando voltasse para casa. Rezaria para que ele continuasse me amando sempre. Mas ela, em vez disso, foi parando de beijá-lo, de falar que o amava e de lhe desejar um bom dia de trabalho. Pior: fazia comentários ríspidos, reclamava, às vezes nem lhe respondia. Até que um dia meu tio pediu, antes de sair atrasado, que ela lavasse a louça que ele deixou na pia na noite passada. Ela primeiramente ficou calada, depois respondeu que não.

Era apenas um prato, um copo, uma frigideira e uma colher de pau. O que custava àquela mulher lavar 4 peças de louça? Tudo bem que ela estava com hérnia de disco, mas caminhava bem e, assim que meu primo saísse para a creche, teria todo o tempo do mundo para os cuidados da casa e outras coisas que precisasse fazer. Além disso, eu já a havia visto guardar e lavar várias outras louças naquela mesma manhã. Eles começaram a discutir em nossa frente, com meu priminho junto. Minha tia disse que deixar aquela louça na pia era “didático”, um termo que segundo ela meu tio tinha usado quando deu uma bronca na faxineira. Eu não entendi o que ela queria dizer, nem por que razão não podia simplesmente ir até a cozinha lavar os pratos para não atrapalhar ainda mais meu tio que já estava atrasado como sempre. Ela afirmou em voz alta que estava com hérnia de disco e tontura – mas a verdade é que estava se virando muito bem, conseguindo fazer tudo; nem sentia dor.

Meu tio começou a gritar para que ela escutasse e a xingá-la para que entendesse como era ingrata; “ingrata do inferno”. Eu não gosto de ouvir nem costumo falar palavrão, mas às vezes é o único recurso que se tem para se fazer entendido. Perguntou se ela não via o milhão de coisas que ele estava fazendo, o quanto estava se virando em dois para dar conta de tudo, cuidar dela com hérnia de disco, levar o filho na creche e pagar as contas. Disse que ela não reconhecia seus esforços porque nunca tinha precisado trabalhar. Ele até a mandou naquele lugar que é o pior palavrão que se pode falar. Mesmo assim, ela parecia não entender. Aliás, ela parecia nem prestar atenção, pois, em vez de responder, ficava falando baixinho e fazendo carinho em meu primo.

Eu sempre achei minha tia um pouco estranha, ficava muitas vezes quieta e nunca dava para saber direito o que estava sentindo. Minha prima contou que ela nem sempre tinha sido assim; nas fotos e vídeos de infância dava para ver como era alegre, generosa, radiante. Mas aos poucos foi perdendo o sabor da vida. Deve ser a menopausa. Os hormônios femininos mexem muito com a gente. Tem mulheres que têm uma espécie de surto todo o mês antes de menstruar. A menopausa é como fosse o ápice desse ciclo disfuncional. Pelo menos aquele incômodo mensal cessa, mas em compensação a mulher fica como minha tia. Quer dizer, não sei se ela chegou à menopausa, mas parece que deixou de ser mulher.

Não foi muito tempo depois daquele episódio que meus tios se separaram. Meu tio seguiu sem entender por que minha tia se negou a lavar aquela louça, e logo se casou novamente com uma moça linda, graciosa e educada que cuida da casa sem nem um ai. Já minha tia seguiu calada e sozinha, cuidando de meu primo até ele virar homem e se casar.

 

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