Natal, uma boa desculpa  

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O natal é uma boa desculpa. Boa desculpa para passar tempo com a família, abraçar a quem se ama, preparar receitas da vovó. É uma boa desculpa para se permitir sonhar os sonhos da infância, seduzir por luzes coloridas, por neve nunca vista, por estrelas a piscar. Uma boa desculpa para ficar emocional, revivendo velhos desejos e nostalgias. O natal provê bons motivos para ser tradicional.

O natal é um bom pretexto para telefonar para o amigo distante e lembrar-se de quem é importante. Um bom pretexto para lembrar-se do que é importante: o natal é quase um memorial. Ou um jogo de memória, pois na hora de desejar feliz natal – diferente dos aniversários – há que se fazer uma lista, para não se esquecer de ninguém. Duas listas: uma para telefonemas, outra para presentes. Fazer-se presente.

O natal é um bom subterfúgio para fazer-se presente, para fitar por menos horas o celular, para falar de assuntos fora do feed de notícias, para preparar uma comida que outras pessoas apreciem, e não necessariamente as veganas da dieta detox. Um bom subterfúgio para assistir “Esqueceram de Mim 2” na sessão da tarde, em vez da série favorita. Um dia no ano (em alguns países ainda são dois) fica reservado para este exercício terapêutico denominado por cientistas islandeses de “sair da própria bolha”. Trata-se praticamente de um ritual de tortura, no qual prevalece o medo de alfinetadas que inadvertidamente estourem a frágil superfície aquosa.

O ano inteiro passamos ocupados com nosso umbigo, nosso trabalho, nossas contas, nossas selfies. Aí chega o natal: obrigação familiar, caça aos presentes, tio chato que vem de longe, quem cozinha o quê, na minha casa é que não vai ser. Muito trabalho. O natal é um trabalho que não paga conta nenhuma; só arromba a bancária. Não tem escapatória, trata-se de um sacrifício anual. No dia que nasce Jesus, cai sobre nós sua cruz.

O nascimento de Jesus é uma boa desculpa para se falar sobre o nascimento de Jesus. E sobre o não-nascimento de Jesus. Ou sobre a existência e inexistência de Jesus, Papai Noel, Deus e Alá. Uma boa oportunidade para mais uma vez enumerar-se os sete pecados capitais e os sete anões, existam ou não. Um, dois, três, quatro, cinco seis, sete anos comemorando o natal da mesma maneira. Natal é um ritual. Natal é sacrifício: não que sacrifica através do sofrimento, da renúncia, mas que torna sagrado.

O natal sacraliza o que nos une como humanos: sonhos, crenças, desejos, memórias, emoções; nosso amor pelo outro.

O natal é uma boa desculpa para fazer muito do que gostaríamos de ter feito durante os outros dias do ano e da vida, mas que não fizemos porque. Não fizemos porque. Porque faltou tempo, vontade, coragem – porque boas desculpas há de sobra. Não poder passar o natal com minha família serviu-me como uma boa desculpa para não ter que passá-lo. Por isso peço desculpas a todos das minhas listas, por minha falta de cortesia neste dia em que fiz outras coisas que gostaria além de amá-los e lembrá-los de que me são tão, mas tão sagrados.

O natal, goste ou não, prazer ou obrigação, resta como um dos poucos elos entre nós. Eles, elos, nós, emaranhados ou entrelaçados, nossas estrelas se alumiam, florescendo uma grande árvore de bolhas coloridas e brilhantes.

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