Mãe trabalhadora (Maternidade Invisível 3)

 In essays

“Você escolheu não trabalhar” – disseram-me, entre tantas outras frases envolvendo a dedicação integral de meu tempo ao meu filho durante seu primeiro ano de vida. “Você não trabalhou para ter o seu dinheiro” – disseram à minha mãe, que abdicou de sua vida, profissão e interesses pessoais para se dedicar integralmente aos três filhos durante os primeiros quatro anos de vida de cada um, totalizando 12 anos da sua vida. Nesse tempo, meu pai se dedicou a diferentes trabalhados remunerados, abriu empresa, mudou de estado, expandiu sua rede de contatos, recebeu propostas profissionais no Brasil e no exterior, cursou mestrado e doutorado, investiu em seguros de vida e assumiu, nos últimos anos de sua curta vida, cargo vitalício de professor federal. Passados 12 anos cuidando de três filhos em casa, minha mãe conseguiu cursar uma pós-graduação à qual eu, a caçula com cinco anos de idade, servi de objeto de estudo; a especialização em Letras se ocupava do desenvolvimento linguístico infantil.

 

Minha mãe sempre me disse para eu não abrir mão de minha carreira por causa de um relacionamento ou família. Eu fiz tudo que pude para ter uma carreira internacional desde os vinte anos de idade, quando comecei a estudar francês, depois alemão, e preparar minha viagem para estudar na Europa, viagem que se estendeu por 14 anos. Fiz aquelas coisas todas que meu pai fez, só não abri empresa, talvez por medo da instabilidade e risco financeiro. Voltei ao Brasil para atuar temporariamente como professora visitante em uma universidade federal, cargo que visa acadêmicos com um currículo de excelência e ampla experiência internacional.

 

Eu já tinha 38 anos ao engravidar e meu contrato acabaria um mês antes da data prevista de parto. A universidade negou meu pedido de “estabilidade provisória” que garantiria o recebimento de licença-maternidade por cinco meses após o parto. Tive que contratar uma advogada para entrar com mandado de segurança, que tramitou na justiça até o terceiro mês de vida de meu filho; quarto mês que eu vivia sem salário. Antes de mudar de continente para atuar dois anos na universidade federal, eu já planejava engravidar em breve, afinal pela minha idade já não me restava muito tempo. Eu cheguei a cogitar permanecer em meu emprego infeliz na Alemanha para engravidar e gozar da licença-maternidade de até 1 ano com pagamento de 65% do salário garantida pelo governo alemão. Lá os salários ainda recebem adicional por casamento e por cada filho que se cria.

 

Se o mandado de segurança não tivesse dado certo, me restaria a licença-maternidade de quatro meses do INSS. O teto do valor da licença do INSS representava um terço do meu salário bruto. A estabilidade provisória garante justamente que gestantes não fiquem no limbo, sem receita financeira, caso seus contratos terminem durante a gravidez ou primeiros meses de vida do bebê. É pouco plausível conseguir um emprego estando grávida ou com bebê recém-nascido; ninguém quer empregar uma pessoa que vai tirar licença em breve. Também é pouco saudável iniciar um emprego novo, ou mesmo uma carreira nova, estando grávida; e nada viável com bebê pequeno e sem rede de apoio.

 

Homens proferiram aquelas frases e tantas outras a tantas outras mães, às vezes diariamente. Às vezes foram seus maridos, às vezes seus próprios filhos; às vezes chefes ou colegas.

 

Muitas vezes, após trocar a sétima fralda do dia acompanhada de choro agudo de cansaço, ou mesmo ao receber o sorriso mais lindo e apaixonado de meu filho, me projeto a dezoito ou trinta anos de agora. Imagino meu filho me dizendo a mesma frase que minha mãe ouviu, ou dizendo à mãe de meu neto a mesma que eu ouvi. Eu imagino aquilo que vai acontecer de toda forma: ele vai esquecer de todo o meu sacrifício diário por sua sobrevivência, bem-estar, acolhimento afetivo e desenvolvimento. Até eu vou esquecer, como esquecem todas as mães, talvez como um mecanismo natural de reduzir o cansaço e sofrer menos; talvez porque esquecemos o que a sociedade inteira esquece por total desvalorização.

 

Minha avó teve seu primeiro de três filhos, minha mãe, aos 17 anos de idade. Com essa idade nem é possível determinar se alguém escolheu ser mãe. Naquela época tampouco era exatamente uma escolha digna de uma mulher direita, de uma mulher de boa família, trabalhar. Já oito anos depois, ao se divorciar de meu avô que assumiu sua homossexualidade, minha avó não teve escolha nem de não trabalhar, nem de não ser mãe de três filhos, nem de não sofrer discriminação por ser uma jovem desquitada. Minha avó certamente tampouco teve escolha de não ouvir tantas e tantas frases discriminando-a e desvalorizando tanto seu trabalho compulsoriamente voluntário como mãe, quanto seu trabalho remunerado como mulher, como mulher desquitada, como mulher mãe de três filhos e, ainda, como mulher artista.

 

Eu escolhi trabalhar mais do que nunca na minha vida, sem nenhuma pausa, fim de semana de descanso, feriado ou férias. Sem distinguir horário de trabalho, de descanso e de lazer. Porém, diferente de muitas profissões, eu pude escolher trabalhar com algo que faz sentido para mim apesar de não me gerar nenhum centavo, nenhum reconhecimento profissional nem sequer social, mas me gerar toda a felicidade do mundo, que é ter um filho e o privilégio de poder acompanhar e possibilitar seu crescer a cada minuto.

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