Luz de gás – Gaslighting – Gasbeleuchtung (Maternidade Invisível 12)
Só queria que saísse de dentro de mim todo o esmagamento silencioso de relacionamentos à mercê dos ritmos aparentemente tranquilos e internamente aflitos de companheiros mestres em manipular argumentos e emoções para manterem intacta sua imagem de homem heroico, perfeito, que nunca erra. Só queria que arrombasse minha garganta cada sapo e cada perereca entalada, enfiada lá dentro como se meu corpo fosse uma lata de sardinhas embebida em óleo de conserva para não me decompor.
“Gaslighting” foi uma das palavras mais usadas, mais “trending”, há dois anos atrás no Brasil por causa do BBB e eu demorei seis para entender o que ela significava e compreender que eu a conhecia intimamente. O conhecimento prático precede o teórico; sabemos o que fazemos e o que sentimos antes de poder nomeá-lo. A palavra alude a um filme de 1944 estadunidense cujo título foi traduzido no Brasil como “à meia luz”. À época, a iluminação doméstica era gerada por gás – Gas Light –, o que deixava as luzes instáveis, piscando, um dos fatos que o marido protagonista do filme distorcia fazendo sua esposa acreditar que era alucinação dela, que a luz não piscava e ela, sim, que era louca.
Pode-se dizer que tive dois casamentos, embora graças à Nossa Senhora e à Pomba Gira nenhum no papel, e no segundo já cheguei traumatizada não permitindo que o segundo marido me chamasse de louca em português, que corresponde ao “verrückt” em alemão que escutei repetidas vezes do marido chinês. Não permiti. Não por qualquer consciência anti-machista nem por conhecer o conceito de Gaslighting, mas simplesmente porque de tantas vezes que escutei “du bist verrückt” (você é louca) de fato quase enlouqueci. Aí então nem me lembro do segundo marido usando essa palavra, mas lembro da pergunta “cê tá maluca/doida?” como algo comum e “você não acha que tá exagerando?”, “sua reação foi desproporcional” ou “isso não faz sentido” como frases cotidianas.
Frases como essas com todas suas variantes possíveis, porque discutir com um intelectual na língua-mãe é linguisticamente muito mais sofisticado do que em uma língua que não é a sua nem a dele. Se eu e o chinês tivéssemos um grande domínio do vocabulário alemão, talvez ele tivesse falado a mesma frase de várias outras formas como “spinnst du?” (você tá fora de si?) “du bist durchgeknallt” (você é biruta) como fez o segundo em português, e talvez por isso o trauma desse abuso psicológico não tenha ficado tão evidente em mim como o que repetia uma mesma palavra. A repetição ela grava, grafa, grita, arranha nosso corpo como a prensa de um disco de cera ou vinil, de forma que se eu escutei uma mesma palavra ou frase repetidas vezes em contextos dolorosos, quando ela for expressa novamente – não importa por quem e em qual contexto, se anos depois, num dia de sol por uma voz doce e sedutora à beira mar – ela toca na mesma ferida, dói e arranha ainda mais fundo.
Assim, depois de ser interrompida repetidas vezes para ouvir que o tom com o qual eu estava falando era inadequado, ou que a palavra que eu empreguei não era a mais acertada, que o momento que escolhi para expressar meu sentimento era inapropriado, que a minha expressão facial não era agradável, que desabar em pranto era exagerado, que meu urro de desespero era agressivo, sinto-me agora não apenas sufocada na garganta e arranhada pelo corpo inteiro, mas como uma aranha embrulhada nos fios que ela mesma teceu. Porque além de tudo a culpa é da mulher ter escolhido aquele homem e ter ainda insistido em algo que já sinalizava seu fracasso desde o início. Culpada e burra: por que não cortou o mal pela raiz logo da primeira vez em que percebeu que a comunicação era tóxica, comunicação que sempre acabava com o lado masculino tendo razão peremptória e o feminino acuado pedindo desculpas? Depois de mil tentativas de explicar seu lado conversando, escrevendo mensagens e poemas, chorando, dando um tempo, por que ela insistiu tanto em se deixar emudecer e esmagar?
Porque ela estava reproduzindo o padrão familiar de amor e casamento que aprendeu vendo seus pais juntos em casa na infância. Porque essa era a única referência diária, e por isso seu grande modelo, de “amor”: um homem e uma mulher cisgênero heterossexuais monogâmicos no qual o homem faz o que quiser com seu tempo porque afinal sustenta a casa, enquanto a mulher cuida por 25 anos durante 24 horas por dia da casa, dos três filhos, de todo mundo; menos de si mesma. Um homem que tem a palavra de ordem da casa e uma mulher que a acata como obrigação e com gratidão. Um homem extremamente inteligente, sem nenhuma relação com sua vulnerabilidade, sempre com argumentos muito racionais e sensatos e uma mulher extremamente sensível cujas emoções representam a família inteira e por isso deveriam igualmente contar como argumento. Uma mulher extremamente inteligente, mas não vista como tanto por ser mulher e por não empregar seu tempo de forma produtiva e lucrativa de acordo com os objetivos do sistema capitalista, tornando-a, também por isso, extremamente frustrada, esmagada e infeliz.
Aranha em alemão é “Spinne” e a expressão “spinnst du?” emprega o verbo tear (spinnen), remetendo-se aos marinheiros que teciam novas redes a partir de restos de cordas velhas enquanto inventavam histórias, contavam reais ou distorciam-nas. Ou as teciam juntos marinheiros, exploradores, filósofos e outros funcionários do rei suas próprias histórias mirabolantes que registravam, gravavam, grafavam em papel, tratado, enciclopédia, bíblia, ensinamentos para o mundo inteiro sobre como encurralar as mulheres na teia de superioridade do homem branco europeu.
Não sei se meu pai distorcia a realidade e chamava minha mãe de louca, de exagerada, com reações desproporcionais ou desautorizava o que ela sentia e pensava argumentando, como se isso fosse algum tipo de argumento, que aquilo não fazia sentido. Só sei que não quero meu filho crescendo com um modelo de amor baseado em abuso psicológico machista e que se chamarem a mãe dele de solteirona, desquitada, bruxa ou sapatão por ter escolhido manter distância de homens tóxicos, vamos receber como elogios. Como se fizesse sentido o que uma mulher decide fazer da vida e como se esses elogios significassem “que mulher admiravelmente sã!”