Dia da consciência branca: quando cor de pele vira habilidade
Minha identificação com a cultura negra remete à infância. Meus primeiros ídolos eram músicos e atletas afro-americanos. Quando uma menina branca de classe média fica repetindo aos seus onze anos que sonha casar-se com um astro de basquete afro-americano, as pessoas olham torto. Nos dois colégios privados que frequentei, o 1% de alunos afrodescendentes era ou filhos dos serventes ou esportistas talentosos recebendo descontos. A única amiga escolar negra de classe média que tive, Joana, filha de médicos, não se identificava com a cultural negra. Tendo pessoas como Joana em mente, amigos afrodescendentes muitas vezes brincam que sou mais negra que muitos negros.
Hoje comemora-se o “Dia da Consciência Negra”. A data refere-se ao provável dia de morte de Zumbi de Palmares, um dos poucos heróis negros reconhecidos em nosso país. Nesse dia, escolas e noticiários tematizam a história e a cultura afro-brasileira. Nesse dia, Joana não pode evitar pensar sobre sua negritude. Nos 364 dias restantes do ano, identificando-se ou não com sua negritude, ela não pode evitar ser negra. Nesse dia, pessoas brancas ouvem falar sobre o contexto daqueles limpando suas casas, cobrando suas compras no supermercado, abastecendo seus carros no posto de gasolina. Nesse dia, eles podem sentir o alívio de ser branco, sem um passado de desgraças nem um presente limpando o banheiro alheio.
Eu nunca tive que limpar o banheiro alheio para garantir educação de qualidade para mim nem para ninguém. Para entrar em contato com a música e o basquete afro-americanos. Para aprender a escrever e falar com propriedade; para saber comunicar meus objetivos de maneira a receber reconhecimento e atingi-los. Para acumular diversos diplomas e conduzir pesquisa sobre a cultura afro-brasileira. Escrevo bem e completei um doutorado porque a minha família teve o tempo de me introduzir à literatura, de corrigir minha escrita, de estimular minha criatividade. Já que, enquanto isso, quem limpava nossos banheiros eram outras pessoas, das quais nenhuma branca.
Porque me ocupo com culturas afro-brasileiras e porque aprendi a me comunicar bem em diversas línguas, fui convidada a apresentar o Dia da Consciência Negra no centro intercultural Forum Brasil em Berlim, como tematizado em outra crônica. Para as pessoas brancas e negras organizando o evento, minhas habilidades contaram mais do que a cor da minha pele. Segui os tópicos solicitados, vesti roupas tradicionais que me emprestaram, oferecendo uma palestra que agradou tanto aos organizadores como ao público, aparentemente. Muito tempo depois, uma amiga afrodescendente me pediu, cheia de dedos, para eu não aceitar mais tais convites.
Esse pedido veio há um mês, e eu não paro de refletir e aprender com ele. Até aquele momento, era para mim uma grande honra receber e aceitar esses convites. Receber o reconhecimento de que posso representar uma cultura com a qual tanto me identifico; enquanto muitas Joanas não se identificam, outras não se interessam em representá-la em uma palestra, e outras não tiveram tanta oportunidade quanto eu de desenvolver habilidade em línguas europeias. Porque sou branca e domino bem as práticas europeias de pesquisa científica e retórica, é muito rapidamente que ganho tal reconhecimento e confiança. Ao passo que para a maioria das Joanas o caminho é mais longo, se jamais bem-sucedido: não importa o quão impressionante suas habilidades sejam, o que conta primeiro é sua cor de pele*.
Existem inúmeros Zumbi dos Palmares, inúmeros heróis negros no passado e no presente: músicos, atletas, médicos, comunicadores, pesquisadores, serventes e caixas de supermercado. São heróis antes de tudo por sua força de resistência, lutando diariamente contra o fato de que a sociedade só reconhece seu valor em um dia do ano, baseada na cor de pele. É muito fácil para mim identificar-me com uma cultura da qual eu só posso vestir os trajes, mas não a pele – sobretudo uma tão cheia de cicatrizes. É fácil para mim ganhar confiança, respeito e reconhecimento, já que com minha pele branca tive tantas oportunidades de desenvolver habilidades da cultura dominante. Difícil é ser herói apesar de toda e qualquer cicatriz.
Independente da dignidade de minhas intenções, enquanto a pele negra – mulata, parda, amarela, vermelha – não for valorizada da mesma forma que a branca, nenhuma de minhas habilidades vai mascarar o abismo que as separa. Mas uma ponte se ergue ao estendermos a mão de um lado ao outro, tanto para o reconhecimento quanto para a crítica. Uma ponte se ergue ao acatarmos os pedidos de tantas Joanas, tantas heroínas e heróis dispostos a nos conscientizar da complexidade de nossas relações e ações.
Que minhas habilidades sirvam para tocar corações e não mais cicatrizes.
*Para entender de maneira simples por que o caminho é mais longo, ver os diversos vídeos compartilhados na internet sobre “privilégio branco”.