Das correntes e redes
Antigamente, nos primórdios da minha juventude, fazíamos correntes. Também de miçangas para vender na escola e ter nossa primeira experiência como empreendedores: nossa primeira start-up. Mas refiro-me aqui sobretudo às correntes de mensagens que, se não fossem repassadas, quebrariam como espelhos. Era muita crueldade dos remetentes: enviavam uma mensagem prometendo algo de bom ao destinatário e, ao mesmo tempo, sete anos de azar caso não contribuísse na viralização daquela praga. Vocês, jovens de hoje, podem já ter sido acometidos por uma dessas no Whatsapp ou noutra rede social, mas elas perderam o vigor de antigamente. Talvez tenhamos sido demasiado descrentes e negligentes, acumulando este período de consecutivos septênios de azar irrevogável em que nos encontramos.
Há uma teoria antropológica de Marcel Mauss sobre a dádiva que explica como, em um povo lá bem distante da melanésia, da micronésia ou de marte, os habitantes selam um pacto implícito entre si quando generosamente oferecem algo, uma dádiva, a alguém. Ainda que ninguém perceba – pois nada foi dado de volta, nem mesmo um recibo – a dádiva torna-se, automaticamente, dívida.
Para aqueles que guardam muitos recibos e fecham suas contas todo final do mês, essa teoria pode se mostrar difícil de entender. Eu explico. No nosso sistema capitalista, também “damos” as coisas, só que elas têm um valor em números (e às vezes em forma de papel e/ou metal), e por isso, via de regra, são pagas e não dadas. Quando não são pagas, viram dívidas; já quando são dadas, viram dádivas. Ora, se as coisas dadas também são pagas, também as dádivas se tornam dívidas. E assim acabam-se também as dúvidas e quaisquer possibilidades de sermos generosos uns com os outros.
O problema é que o amigo que manda a corrente só está querendo ajudar. Ele só está querendo ajuda. E, na tentativa de ser dádiva, te causa dívida. É a mesma lógica das redes sociais: na tentação de estarmos conectados com todo mundo o tempo todo de forma generosa e desinteressada, ficamos devendo a eles a devida atenção. Nada pior do que visualizar uma mensagem sem querer e não responder imediatamente. Seu amigo dificilmente vai te perdoar, e você muito menos. E assim se acumulam dívidas daquilo que deveria se dádiva: poder cultivar diariamente laços afetivos mesmo à distância, tipo Deus. Deus está aí disponível, onipresente, em todas as partes, a todo momento, querendo nos ajudar. E nós constantemente em dívida com ele, pagando nossos pecados.
Onipresente como essa rede social que virou corrente, prendendo uns aos outros através dessas telas coloridas de forma irrevogável. Promete dádiva e dá, em abundância: com apenas um clique nos informamos sobre e nos conectamos com qualquer coisa na face da terra. Cada clique uma dádiva, cada clique uma dívida: cada site acessado, cada aplicativo utilizado, requer apenas seu consentimento com um interminável termo de compromisso atualizado a cada mês, que, a cada vez, você não lê.
Na rede, todas as suas dúvidas sobre minha falaciosa teoria de Mauss, sobre como iniciar uma start-up, sobre como encadear miçangas em um mesmo fio de linha serão esclarecidas e todos os seus problemas de calvície, desemprego e solteirice, solucionados. Basta vender sua alma clicando aqui, assinando eletronicamente aqui, se engajando com a publicação aqui, repassando o link aqui, compartilhando aqui, curtindo. Ai de quem não clicar, pois terá heptênios de azar, quando não de insanidade.
O que não se esperava era um setimestre de azar que acometesse a todos ao mesmo tempo, tornando a dívida digital no nosso pão de cada dia, nossa dádiva global.