Uma péssima notícia

 In essays, society

Ainda ontem recebi uma informação de utilidade pública que me abalou profundamente. Conversando com um jovem programador de aplicativos para jornais em Berlim, sondei a possibilidade de desenvolvimento de um app para leitores com necessidades especiais, como eu. Sofro de hipersensibilidade a notícias. Entre os sintomas figuram:

– Raiva, enrubescimento da face e aumento da pressão sanguínea perante opressões, injustiças e manipulações dos fatos;

– Desorientação com sensação de vertigem ao não conseguir discernir fontes fiáveis e os interesses por trás de cada notícia;

– Estafa mental e dor de cabeça resultantes do excesso de informações acerca do mundo inteiro, ainda multiplicado pelas cinco línguas em que posso lê-las;

– Ansiedade com palpitação gerada pelo fato de que quanto mais tentamos nos atualizar, menos atualizados nos sentimos;

– Profunda tristeza ativada pelo sofrimento alheio e a destruição de nosso planeta, muitas vezes acompanhada de lágrimas e falta de motivação para seguir em frente.

Se você também sofre com frequência de um ou mais desses sintomas, não procure um especialista. Elimine o mal que lhe aflige evitando abrir páginas de jornais espontaneamente. Deixe alguém de confiança funcionar como filtro lhe informando sobre fatos que podem ser de relevância para a sua vida. Pois é, nem todos os acontecimentos na Nigéria ou na Califórnia têm necessariamente algum impacto sobre você e seu núcleo social. Já a reforma da previdência tem, mas falemos da carne estragada que é mais escandalosa, afinal alguém na Nigéria ou na Califórnia pode acabar ingerindo-a.

O que mais causa indigestão acaba sendo engolido facilmente, pois a ciência, graças a Deus, inventou o antiácido estomacal. Após 70 anos trabalhando já estaremos mortos mesmo; tampouco nos importaremos com a lei que nos escravizou. Mas o escândalo da carne, esse sim, mostra como nosso país está atrasado. Até porque todos sabemos que a dieta vegana e vegetariana unidas a exercícios crossfit diários garantirão nosso futuro saudável e sem rugas. Mais saúde e reconhecimento para viver com bem-estar e por muito tempo dentro de nosso campo de concentração.

Berlim – antigo quartel general controlando campos de concentração, trabalho forçado e extermínio dentro e fora da Alemanha, lugar onde se decidiam as estratégias de escravidão e consequente extermínio daqueles que não eram saudáveis, sem rugas, que não tinham olhos azuis nem eram cristãos – tem muitos jornais. Seus noticiários veiculam informações do mundo inteiro, já que hoje desponta como capital não apenas do país da salsicha, mas da Europa. Aqui tudo é possível, inclusive carne de cavalo congelada comercializada como carne bovina, como também carne de kebab – o símbolo gastronômico da cidade repleta de turcos – sendo vendida anos após seu vencimento. Na Germânia, alimentos têm sim seu espaço de polêmica garantido, mas não abafam golpes do próprio governo federal no sistema previdenciário nem no seguro desemprego, direito garantido a todo cidadão do país.

Porque em Berlim tudo é possível, muita gente como eu vem morar aqui; gente que acredita que tudo é possível. Gente ingênua ou indigesta para alguns, engenhosa e corajosa para outros. Eu acreditei, mesmo que por alguns minutos, ser possível a criação de um aplicativo de jornal voltado para essa gente, para gente com o meu perfil e sintomas, que somente apresentasse notícias positivas. Tecnologias sustentáveis, pobrezas erradicadas, tréguas, teatros gratuitos. O programador, com experiência no mundo das impossibilidades muito mais avançada que a minha, apreciou a ideia, mas logo confessou: notícia boa não vende.

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