Sabedoria de gato
Uma das faculdades que diferencia os humanos de outros animais é a consciência. Porque somos conscientes de que nascemos e de que morreremos, inventamos sentidos, artes, religiões, esportes e ciências que nos tranquilizem durante este ínterim preenchido por nossa vida. Os gatos não sabem – ou ao menos não se ocupam com o fato de – que morrerão: lambem-se ao sol seguros de que aquele momento de luz e calor durará a eternidade.
Tenho dó dos animais oferecidos à doação porque os donos já não podem ou não querem mais cuidar. Penso nos anos que receberam carinho e segurança dos donos, construindo confiança e afeto mútuos, que da noite pro dia parecem não ter mais valor para aqueles humanos. Imagino a dor do abandono, de não ser mais querido por alguém querido. Sinto como em minha própria pele a rejeição que sofrem – que sofreriam, se fossem humanos com consciência como eu. Afinal, o ínterim de vida dos gatos é ínfimo, durando cerca de 15 anos.
15 anos é a idade em que meninas da alta sociedade debutam na vida. Cheias de pompa, valsas de Strauss e maquiagem, deixam de ser menina para se tornar mulher – como Simone de Beauvoir escandalosamente previa. A partir dali, as meninas da alta e da baixa sociedade começam a ponderar com sua consciência humana a ideia de aumentar seus seios com silicone e injetar botox em suas primeiras covinhas no rosto. Já que, debutadas, renunciam ao papel de filhinha do papai para sair em busca do príncipe encantado que lhes salve da sarjeta. Enquanto que para os gatos a rejeição independe de sua vontade de manter-se ou não em sua zona de conforto, o destino das ex-meninas-agora-mulheres está em suas próprias mãos ou, mais precisamente, em seus rostos impecáveis e corpos bem esculpidos.
Dotadas de consciência, pois, as raparigas são desde os 15 anos perseguidas pelo medo de envelhecer e pela memória de seu rosto tenro e liso de meninas puras e inocentes. Os gatos, por sua vez, permanecem puros e inocentes: não vislumbram que o futuro lhes guarda o envelhecimento, nem que seu passado foi mais glorioso que seu presente. Os gatos vivem no presente. O que não significa que eles, como muitos seres vivos, não tenham memória. Os gatos lembram das pessoas queridas pelo seu cheiro, pelo olhar, pela voz, pelo toque da mão. E, sim, muitas vezes associam essas memórias ao fato de terem recebido comida dessas mesmas pessoas. Quem tem gato sabe que eles sabem; que eles lembram de nós não apenas por seu instinto de sobrevivência, por suas necessidades fisiológicas, mas sobretudo pelas afetivas.
Os gatos sabem; não têm consciência, mas sabem. Brigam uns com os outros e, minutos depois, lambem-se como se nada tivesse acontecido. A mesma coisa dia após dia. Esqueceram da briga? Esqueceram que a perderam? Perderam o medo de perder? O saber dos gatos é duradouro, sólido, pois não se sedimenta em trivialidades a serem cobertas com maquiagem ou silicone, em palavras mal colocadas no calor do momento, nem em expectativas de como o futuro deve ser. O saber dos gatos sedimenta-se nos afetos: evitam ambientes onde foram maltratados e se apegam àqueles onde, apesar de suas trivialidades, são amados, alimentados, bem cuidados.
Os gatos não guardam rancor quando passados para um novo ambiente também repleto de amor e cuidado. Alegram-se ao rever os donos, mesmo meses depois. Os gatos não criam uma interpretação racional, consciente, científica, de sua vida e dos seres amados na tentativa de proteger-se das rugas, das trivialidades, do abandono, do passado e do futuro; das intempéries do tempo. Não se maquiam nem criam arte. Os gatos apenas vivem o ínterim da vida como se fosse ínfimo.