Querida carência
“Eu queria ter alguém que me escolhesse”
“Eu queria ter alguém que se importasse comigo”
“Eu queria ter alguém para me abraçar”
Eu também era carente. Eu também esperava que surgisse alguém para me fazer mil coisas que pareciam tão simples: alguém que me achasse especial. Eu era tão humilde que as novecentos e noventa e noive coisas restantes nem eram tão importantes; bastava sentir-me especial para alguém.
Tantos amigos pronunciavam comigo frases parecidas com essas três. Nos uníamos em nossa dor, em nossa falta, tendo cada vez mais certeza de que o mundo era injusto conosco. Queríamos uma pessoa para preencher nossa escassez. Não escassez de recursos materiais, mas afetivos: uma ausência dentro do peito, na ânsia por seu preenchimento.
Era uma escassez do que queríamos – assim mesmo, no pretérito perfeito. Algo perfeito, intacto, que antecede o presente. Algo perfeito, inalcançável, que remete a uma infância distante, a um passado remoto e idealizado, que nada tem a ver com o presente. Que nada tem a ver com as pessoas que aparecem hoje em nossa vida, que muitas vezes mal conhecemos e já sugamos com nosso vácuo desesperado. Ou que bem conhecemos, e de quem exigimos exagerada atenção.
Conservamos um calabouço de mágoas, decepções, ressentimentos decorando aquele vazio, em uma eterna espera do guerreiro destemido a resgatar-nos dizendo: você é tão especial; eu te salvo da escuridão. Será que eu acharia especial um peito assim rasgado, querendo prender-me em suas teias de aranha? Será que eu escolheria salvar alguém da escuridão, se não tenho forças para salvar-me da minha própria?
Nada importava. Eu queria. Nós queríamos. A carência tornou-se querência: era cômodo morar lá.
Tão apegados ao que queríamos, éramos cegos para o que recebíamos. Cegos para o que tínhamos a aprender com o recebido, independente de corresponder ou não ao nosso querer. A carente querência da infância parecia tão segura, tão familiar, tão certa, que permanecemos lá teimosa e infantilmente. Sem perceber uns aos outros, sem se importar, sem escolher nem abraçar o mundo – e muito menos a nós mesmos.
Aprendendo e praticando cada vez mais a gratidão, ainda assim me sentia injustiçada pelo mundo que não me dava aquilo que eu febrilmente ansiava. Até que percebi esse desequilíbrio: eu é que era injusta com o mundo, que com tanto me agraciava a todo instante.
Eu tinha grandes amigos que se importavam comigo.
Eu tinha valiosas pessoas que me haviam escolhido.
Eu tinha tantos braços abertos para mim.
Todos esses seres doavam-se para mim; todos eles me achavam especial. Eles me proporcionavam mais de mil coisas tão preciosas. Doavam-me seu tempo, seu calor, suas palavras, seus silêncios de compreensão.
Prometi para mim mesma, em voz alta para o mundo ouvir, que fecharia aquele calabouço. Ele permaneceria parte de mim, mas só de mim. Era injusto deixá-lo aberto sugando e ferindo outras pessoas.
No momento em que saí dele, vislumbrei o imenso campo de girassóis à sua volta. Enxerguei e recebi o mundo, com suas flores e seus espinhos. Recebi a mim; tanto minhas flores, quanto meus espinhos. Às vezes a cortina do calabouço se abre, e eu escolho cuidar do jardim lá fora. Um jardim que floresce e cativa cada vez mais ao mundo e a mim mesma. Descobri-me especial. Eu me escolhi.
Como num passe de mágica, alguém me escolheu. Não é em direção à sombra, e sim ao sol, que gira um girassol.
Minha querida, que belo desabafo….Como um girassol, girando ao sol!!!!