Medo de bicho-papão, e vice-versa
Para quem não se lembra, bicho-papão é aquele famoso monstro que mora no armário das crianças com a promessa de papá-las durante a noite se não dormirem. Mas quem inventou o bicho-papão? Os adultos ou as crianças precocemente, isto é, antes de terem se tornado adultos? O bicho-papão existe, apesar de ninguém nunca o ter visto e de não haver provas de sua existência. Aliás, ele não existe, e mesmo assim é poderoso, amedrontando pessoinhas ingênuas através de sua fértil imaginação.
Em vez de imaginar um unicórnio de sete cores cheio de alegria e sorte à sua espera durante a noite, as crianças cedem à tentação do monstro maligno. Nunca viram nem um nem o outro, mas se apegam ao monstro pelo tamanho que pode apresentar. Com o devido cuidado, seus pais o alimentam dentro do armário todas as noites, tornando-o cada vez mais gordo. Pobres pais: trabalham o dia inteiro, chegam em casa exaustos, e seu filho não quer dormir de jeito nenhum, preferindo pular na cama como se cavalgasse um unicórnio.
Para convencer aquele projetinho de gente de que o melhor que tem a fazer é dormir no horário estabelecido, contar a história do unicórnio é pouco ou nada eficiente, pois de tão apaixonante tira-lhe o sono. O jeito é convencer-lhe com uma ameaça; com a iminência de que algo ruim, nunca visto nem sentido antes, mas extremamente intimidante, acontecerá caso não dormir. Imagine o bicho-papão, digo, a ansiedade e o medo daquela criança naqueles minutos intermináveis em que não consegue pregar os olhos. Queria mesmo era brincar com o unicórnio, mas nem ousa, pois pode acabar engolido por um monstro.
A imaginação arma ciladas. Imaginamos príncipes em cavalos brancos e donzelas virgens batendo à nossa porta, ao mesmo tempo que imaginamos o príncipe virando sapo e a donzela partindo em uma abóbora depois da meia noite. Sofremos de ansiedade por encontrar príncipes da realeza e de decepção ao descobri-los diferentes das quimeras idealizadas. Também sofremos por serem a quimera idealizada, mas não nos sentirmos príncipes suficientes para ela. Também sofremos por nunca ter ousado abrir o armário, para evitar o risco de descobrir milhares de seres inimagináveis. Quando adultos, dormimos no horário estabelecido sem a necessidade de ouvir contos da carochinha, e ao abrirmos o armário o encontramos tão vazio como nossa própria vida.
O poder do bicho-papão nutre-se da certeza, cultivada dia a dia pelos dois seres mais amados na infância, de que não vale a pena ficar acordado. A certeza de que não vale a pena arriscar. De que, se é possível ter medo do armário do próprio quarto, fora dele tudo só pode ser ainda mais ameaçador. E de que a descoberta de príncipes, donzelas, e unicórnios fascinantes só pode ser fruto de imaginação tola e passageira. O bicho-papão não papa criancinhas; mas se alimenta daquilo que as limita: o medo. E, mesmo não existindo, crianças já adultas deixam-se devorar por ele.
Bela interpretação do mito!!! Metáforas belas , criativas e sensiveis. Em frente e a postos!!!!n Go ahead Nina