Crenças da ciência vs. crenças do porém (Choques Culturais 3)

 In essays, society

Os brasileiros são supersticiosos – assim acreditam os céticos alemães. Qualquer prática desviante da ciência e do cristianismo é chamada de superstição, em alemão “Aberglaube”, uma junção do advérbio conectivo “porém” com o substantivo “crença”. Enquanto o brasileiro aprecia um mergulho no mar como limpeza da alma, o alemão considera agradável passar um fim de semana na ilha espanhola de Mallorca. Para ele, a limpeza de alma brasileira é uma “crença do porém”, ao passo que sua própria curiosidade pelo mar e pela terra dos outros é chamada de “férias”.

Não é todo fim de semana que o alemão pode cruzar oceanos para experimentar paisagens e aventuras excitantes em terras alheias. O intercâmbio cultural lhe propicia a oportunidade de praticar capoeira, samba e santo daime em seu próprio país. Apesar da grande desconfiança germânica perante as crenças do porém dos povos pouco cristã-cientificamente desenvolvidos, sua curiosidade pode ser ainda maior, submetendo-os não somente a experiências crentes do porém, mas a criar espaços dedicados a elas. É o caso da Maloca Auerworld no interior do estado da Turíngia, coração da Alemanha. Uma moderna construção inspirada nas malocas indígenas da Amazônia “liga mundos e possibilita experimentar essa ligação de maneira contemporânea”.

Certa vez, a Maloca Auerworld reuniu estudantes universitários, um índio de olhos azuis norte-americano e um índio brasileiro, promovendo tal experiência contemporânea entre mundos. A reunião era apenas uma de muitas atividades com esse fim, entre as quais figuravam caros rituais para superar os limites do corpo humano em, por exemplo, saunas com temperaturas acima de 70 graus. Num país muito frio, a relação com o próprio corpo é muitas vezes esquecida, senão anulada. Jogar capoeira, dançar samba e frequentar saunas adquirem efeito terapêutico. Os estudantes tiveram muito prazer em jogar e dançar com o índio brasileiro. Porém, alguns estavam lá por mais do que horas de descontração: buscavam uma ligação mais profunda com um outro mundo, com uma crença do porém.

Convocaram-me para traduzir um ritual xamânico individual entre o índio brasileiro e uma soturna estudante alemã. Tive medo de mediar o entre mundos. Não sabia o que esperar; se o dia viraria repentinamente noite ou se um espírito apareceria. Fomos à beira de um riacho atrás da maloca, onde o xamã começou a cantar em uma língua amazônica e a dançar. Passou folhas e fumaça de charuto no corpo da menina – fez-lhe uma limpeza, de acordo com sua crença do porém.

O xamã parou seus ritos para perguntar à estudante o que lhe afligia. “Tenho síndrome de Borderline”, ela respondeu. Eu nunca tinha visto um xamã, tampouco tinha ouvido o termo Borderline. Pedi que explicasse. “Eu me sinto muito solitária, passo horas trancada em meu quarto, às vezes de tanto sofrimento quero sair do meu corpo e, para tanto, me corto”. Traduzi suas palavras literalmente para o sábio xamã, que ficou perplexo. Por que uma jovem de 20 anos se mutila era algo que nem eu, nem o xamã, nem o espírito evocado e muito menos ela mesma entendiam – independente de língua, de crença e de mundo.

O fato do psiquiatra entender e nomear Borderline o conjunto de forças emocionais que atormentava aquela soturna estudante infelizmente não era suficiente para calá-lo. O fato do xamã lidar com forças que a ciência considera ilegítimas não era suficiente para ele entender aquele conjunto de forças com nome estranho, mas foi suficiente para calá-lo. A soturna alemã sofria, sem amparo suficiente da cristã ciência – de sua própria crença, língua e mundo. Porém, no dia seguinte chegou radiante, sorridente, feliz e muito agradecida pelo ritual. Sentia-se melhor em seu próprio corpo e com a alma limpa.

Porém, crença.

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Comments
  • perla
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    Não havia lido ainda…tenho que por minhas leituras em dia hehehehe

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