Conturbante ou sem turbante?
Caros amigos brancos e simpatizantes, por que não usar turbante? Certamente todos nós, assim como nossos antepassados, passamos por maus bocados. A vida é cheia deles. Mas alguns maus bocados nunca passaremos, salvo raras exceções. Trata-se de maus bocados de longa data, cheios de nuances que diferem das sete cores do arco íris refratadas pela luz. São nuances da sombra, daquilo que temos de pior; mil tons do racismo.
Talvez três vezes na vida eu tenha passado por essas raras exceções: fui chamada de “nariz grande” por um chinês, criticada por ser uma “euro-brasileira” pesquisando cultura afro-brasileira e por ser uma branca apresentando um evento em comemoração ao 13 de maio. Amigos brancos e simpatizantes me dizem “viu? Eles (os não-brancos) reclamam de racismo, mas são eles mesmos racistas”. Racistas, infelizmente, existem em todos os tons de pele. É da natureza humana ter preconceitos; são uma forma de filtrar informações e buscar segurança. O que não é natural, apesar de naturalizado, é o olhar enviesado que acompanha, até por séculos, determinados preconceitos.
Há diferenças fundamentais entre me provocar intelectualmente sobre minha atuação em um campo tão sensível como o da cultura afro-brasileira, e passar pelo sofrimento hereditário e diário do racismo perpetuado desde a escravidão. Enquanto meu nariz é grande em comparação ao de um chinês, ele não é necessariamente considerado feio, inferior ou perigoso. Nunca me agrediram me mandando cortar meu cabelo “ruim”, me chamando de burra ou incapaz, me vistoriando em cada loja que entro, nem me dando um tapa na cara por não ceder meu assento a alguém com outra cor de pele. Diferente de meus amigos negros que viveram essas cenas, eu não sei e nunca saberei o que é sofrer violência racista. Eis um de meus perpetuados privilégios.
Se colocar turbante implicasse, assim como ter a pele mais escura ou o cabelo mais crespo, em qualquer ato de violência racista, certamente nenhum branco o faria. Aliás, ninguém o faria; ninguém optaria pelo sofrimento. Para os negros, não há a opção de vestir sua pele discriminada nos dias de festa e tirá-la no dia seguinte, como eu faço após uma apresentação com o meu traje de baiana, como faz alguém que alisa o cabelo ou abandona seus dread locks. Não há a opção de se despir do sofrimento que custou transformar o turbante,de uma marca diferenciadora de escravos em um símbolo de conquistas, liberdade e orgulho cultural.
Não temos a opção masoquista de vestir a pele negra, entendendo o sofrimento diário e ancestral que ela carrega, mas temos a opção de nos desfazer de nosso sadismo. Podemos escolher não agredir o não-branco nem mesmo em pensamento, deixando de supor que uma negra no consultório não pode ser a médica, mas no máximo a enfermeira. Podemos endireitar nosso olhar enviesado, enfrentando o medo socialmente inculcado que nos faz atravessar a rua ao avistar um negro, ou a preferir sentar ao lado de um branco no ônibus. Podemos escutar aqueles que finalmente têm espaço para expressar o que sentem, em vez de confrontá-los com mais menosprezo, “viu? Eles mesmos são racistas”. Reconhecer e exorcizar o racismo dentro nós mesmos deveria tornar-se um exercício diário.
Reconhecer e exorcizar o racismo dentro nós mesmos deveria tornar-se um exercício diário.
Porque sou privilegiada, posso escolher usar turbante ou o que eu bem entender, sobretudo se isso me ajuda a diminuir minha dor pessoal. Mas também posso escolher não usar, por saber que isso toca na dor de muita gente. Apresentei trezes de maio e dias da consciência negra a pedido de um pai de santo negro, que me vestiu com o seu próprio traje de baiana e turbante. Por isso, aquelas provocações à minha cor de pele e origem sociocultural não abalaram a mim, quanto menos à imprensa ou a um país inteiro. As críticas só me tornaram mais consciente das tristes, porém ainda intransponíveis diferenças entre dois povos separados há séculos por sua cor de pele e objetivos: um buscando a diminuição de sua penúria e o outro a manutenção de seus privilégios.
Vivam os pretos velhos; viva o movimento negro.
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