Noel invisível (Maternidade Invisível 6)

 In crônica, maternity, sociedade

Os olhos de Bruno brilharam quando sua tia contou que, perante a lua quase cheia, havia passado há apenas alguns minutos atrás Papai Noel com seu trenó. Ninguém viu quando nem como ele passou na casa deixando vários presentes no jardim, nem onde estavam as mães neste momento crucial. Aquele mesmo brilho resplandeceu ao escutar na voz de sua mãe as palavras que o bom velhinho lhe escreveu em uma carta que seu desejo seria realizado quando voltasse para casa, pois o presente não cabia em sua mala da viagem. Em meio a tantas crianças espalhadas pelo mundo inteiro, Papai Noel tinha escrito uma carta especialmente para Bruno, com caligrafia imperceptivelmente idêntica à de sua mãe.

No dia seguinte, Bruno já conjeturava sobre as férias de 364 dias que o Papai Noel teria acabado de começar: dali pra frente ele teria o inverno, a primavera, o verão e o outono inteirinhos para descansar e se recuperar de um único dia de trabalho, o Natal. Seu pai explicou que não era apenas um, mas dois dias, por causa do fuso horário, e apenas se o Papai Noel viajasse em sentido contrário à rotação da Terra, de maneira a chegar a todas as casas cristãs do mundo em um mesmo dia. Um dia que dura dois dias. Talvez por isso se comemore o dia do Natal na véspera do Natal e o dia seguinte ao Natal, feriado em diversos países que não o Brasil, sendo ainda dia de comemorá-lo.

Já eu tentei explicar a Bruno que o Papai Noel passava o ano inteiro trabalhando, preparando a viagem e os presentes que espalharia pelo mundo inteiro durante a noite de Natal, além de ficar monitorando diariamente o comportamento de todas as crianças cristãs do mundo, para determinar se teriam seus desejos realizados ou não. Aquilo tudo soou muito abstrato para a criança de 5 anos de idade. Ele que nunca vê o Papai Noel entregando os presentes, enxerga justo nessa tarefa, através de sua imaginação, a da Disney e a dos Shopping Centers onde tira foto em seu colo, o bom velhinho trabalhando. Se até o grande ícone global que recebe todos os anos cartas de milhares de fãs do mundo inteiro tem apenas seu trabalho de um (dois) dia do ano reconhecido, enquanto todos os seus esforços de acompanhar ao longo dos demais 364 dias o comportamento dos remetentes das cartas, a logística de entrega global em tempo recorde e humanamente impossível, o treinamento das renas e dos duendes, ficam invisibilizados, o que resta pra mamãe Noel?

Existe, sim, uma Mamãe Noel de quem ninguém fala, que ninguém sabe o que faz, e que só existe nominalmente para fomentar a imagem de um Papai Noel feliz e generoso, afinal por trás de um grande homem sempre há uma mulher. Para fomentar, ainda, a imagem de um Papai Noel heterossexual cisgênero e chefe de família cristã. Inclusive os ajudantes do Papai Noel são todos duendes homens. Quem realiza o desejo de todas as crianças do mundo é um homem, com o apoio de outros homens, todos brancos, justo no dia de nascimento de um dos homens mais importantes, filho de um deus homem que engravidou uma mera terráquea fêmea e virgem, porque afinal homem faz tudo melhor que a mulher, inclusive é Deus. Adão, Jesus e até o próprio Deus são perfeitos com apenas um porém: eles não parem. Marias feitas de sua costela são necessárias apenas para parir.

Ninguém sabe como a Coca-Cola conseguiu colar todos os retalhos mitológicos e eternizar a cor vermelha e branca do Papai Noel, nem como passou de um remédio digestivo capaz de dissolver ossos de galinha em segundos para uma das bebidas mais vendidas mundialmente. Assim como ninguém sabe por que os coelhos da Páscoa têm a capacidade de colocar ovos. E aqui também poderíamos discorrer sobre a invisibilidade das galinhas e das coelhas – exceto as da revista Playboy. Ainda assim, todos querem tirar uma foto com o Papai Noel vermelho e branco no shopping, em meio a algodões brancos, pinguins e ursos polares de pelúcia empoeirada, mas não no colo da mamãe. Já se tenha idade ou não para saber deste fato, mamãe é a pessoa que compra e esconde os presentes, escreve e recita as cartas, inventa as histórias, instrui os demais parentes em como evitar que a verdade vaze e que as crianças vejam os adultos colocando os presentes debaixo do pinheiro de plástico, pois os de verdade só existem em climas temperados.

Em suma, ninguém nunca questionou a sexualidade do Papai Noel, quanto menos perguntou onde está a Mamãe Noel, já que seguramente ela está arrumando a casa enquanto aguarda o marido voltar de um dia (dois) puxado de trabalho com uma refeição quentinha na mesa e a garrafa de seu uísque preferido.

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