Mais-valia materna (Maternidade Invisível 11)

 In crônica, feminism, maternity

Meu pai era administrador, consultor financeiro de empresas diversas. Vivia fazendo cálculos em seus aparelhos eletrônicos ancestrais, como calculadoras científicas, que aos poucos se tornariam computadores e laptops. Segundo seus cálculos, valia mais a pena aplicar o valor da mensalidade de um plano de saúde em um fundo de investimento do que presentear a seguradora com um contrato mensal. Também de acordo com sua matemática pura, valia mais a pena financeiramente lavar a roupa na lavanderia do que adquirir uma máquina de lavar.

Meu pai ganhava parte do seu pagamento em permuta das empresas em que trabalhava: da fábrica de calçados, ganhava tênis para seus filhos; da fábrica de móveis, guarda-roupas e camas de mogno em que ainda dormimos 30 anos depois; da rede de hotéis, diárias para passarmos fins de semana na serra ou um mês inteiro na praia. Minha mãe é quem nos levava para escolher os tênis, quem sabia o número de nossos pés, quem auferia e medida de nossos quartos e reconfigurava a casa para os novos móveis, quem verificava o calendário escolar para agendar as viagens, quem arrumava três malas dos filhos e lembrava ainda de alguma necessidade sua para levar na sua mala como calcinhas, esquecendo de seus remédios, maiô e sandálias. Minha mãe era quem, evidentemente, passava o tempo todo com a gente enquanto meu pai trabalhava.

A matemática familiar é algo teórica e juridicamente acordado entre as duas partes responsáveis; marido e esposa, mãe e pai. Na teoria, se o acordo é dividir as responsabilidades familiares igualmente em 50%, cada um trabalha o mesmo número de horas, cuida da casa e da família o mesmo número de horas e divide igualmente as despesas. Na teoria, pois na prática a matemática é que as mulheres recebem até 34% menos que homens em cargos iguais. Por isso, seguindo na teoria, neste acordo ambas as partes teriam que dividir igualmente não apenas as despesas, mas a renda. Dividindo igualmente a renda, ambos trabalhariam o mesmo número de horas e teriam o mesmo valor mensal para arcar com as despesas. Que mundo ideal.

No mundo real, o que alimenta o capitalismo é a mais-valia: o valor excedente ao trabalho realizado pelo trabalhador que se transforma em lucro para o dono da empresa, aquele no polo superior da equação que tem poder independentemente de fazer ou não algo da vida, de trabalhar muitas horas ou nenhuma, de cuidar da família ou não. O empregado é obrigado a investir muito mais horas que o necessário para produzir um determinado produto, sem ganhar nada a mais por isso, nem dinheiro nem tempo livre, pois é obrigado a cumprir as horas contratuais. O seu trabalho tem um “valor a mais”, só que não para ele; tem um valor, uma valorização, uma mais-valia, que passa muito distante dele, indo diretamente para o bolso de seu empregador.

Esse cálculo que meu pai não fez, ou se fez deixou quieto, lembra muito o das finanças familiares. Se quem cuidava em tempo integral da casa e das crianças era a minha mãe, em comum acordo com meu pai, e meu pai trabalhava apenas durante as horas de trabalho, ele gozava da mais-valia sobre o trabalho excedente de minha mãe. Sim, diferente da situação hipotética anterior fifty-fifty, meu pai arcava com todas as despesas da casa. Então quer dizer que ele pagava o trabalho em tempo integral da minha mãe? Não, seu trabalho de 40h semanais pagava a metade das despesas dele e a metade das despesas dela, já que a responsabilidade pela família e pelas despesas era dos dois.

Essa conta só ficou evidente quando eles decidiram se separar após 25 anos de casados, pois, apesar do comum acordo, ele não se viu na obrigação de continuar pagando a metade dela, mas apenas uma pensão irrisória aos filhos, evitando que a ex-esposa abusasse da riqueza dele cometendo extravagâncias como a viagem a Europa que ele fez sozinho. Para mim, a conta só começou a ficar evidente mesmo quando eu virei mãe.

Meu pai pagava a metade das despesas pertencente à minha mãe; mas não seus ganhos, nem as 128 horas semanais que ela trabalhava a mais do que ele cuidando da família. Em um cenário hipotético após uns 12 anos, em que os filhos já mais crescidos estariam dormindo a noite inteira no mesmo horário como três soldadinhos, poderíamos considerar que minha mãe já conseguia dormir 56 horas semanais e diminuir o tempo de trabalho excedente dela para 72 horas. É possível ainda subtrair as 25 horas em que estávamos no colégio, sem contabilizar o deslocamento diário de minha mãe para nos levar e buscar e considerando erroneamente que ela ficasse essas horas com as pernas pro ar sem fazer nada. Total: 47 horas excedentes. Para mim, a conta só se materializou agora que pus na calculadora, como meu pai. Meus olhos chegaram a arder de exaustão após o choque da realidade.

Foi assim que descobri que minha mãe também trabalhava sob permuta, no caso para meu pai. Ela se via obrigada a dar algo em troca do dinheiro que ele produzia, que era seu tempo. Tempo, amor, cuidado, dedicação aos três filhos e a ele. Mas o tempo de trabalho do meu pai era muito alto e valioso, muitas vezes ele recebia até em dólares, enquanto o dela era zero cruzado, zero cruzeiro, zero real.

E por isso tivemos que nos acostumar à ausência dele ou por estar trabalhando, mesmo no feriado de Natal, ou por precisar cochilar após o almoço para descansar de seu trabalho. O acordo de permuta, quebrado na separação, era: meu pai nos dava uma parcela de seu dinheiro, minha mãe todo o seu tempo e amor.

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