Peito aberto vs. Definição (Choques Culturais 2)

 In essays, society

A abertura dos brasileiros faz gente do mundo inteiro sentir-se em casa no país tupiniquim. Não apenas o próprio lar pode ser rapidamente aberto para alguém que acaba de se conhecer – e para quem se abre a porta antes de sair, para que volte. O convite à própria casa, a comer de sua comida, a conhecer sua família, são mera consequência de seu enorme coração aberto.

Foi após cinco anos vivendo na Alemanha que fiz meus primeiros amigos alemães. Colegas de trabalho, passávamos o dia juntos, que aos poucos se estendeu a jantares em algum restaurante, até convidá-los à minha casa e eles, para compensar, me convidarem à sua. Sempre que saio aguardo que me abram a porta, o que nunca acontece, pois a superstição de que na falta daquele gesto o convidado não voltará parece limitar-se aos latino-americanos.

Latino-americanos dizem “mi casa es tu casa”. É tão bom sentir-se em casa fora dela, sentir-se confortável e querido em outros lugares, mesmo desconhecidos. Somos bem recebidos e aceitos como pela própria família, muitas vezes sem nem ter que provar que somos boas pessoas. A confiança é o ponto de partida, e não a desconfiança de que o convidado pode me roubar, enganar, trair, nem de que o anfitrião pode me trancar em sua casa, me envenenar, esquartejar e arrancar meus rins numa banheira cheia de gelo.

No gelo da Alemanha, tudo tem o seu lugar. Todas as árvores têm um número de inventário e não há animais de rua. Os moradores de rua têm acesso a abrigos. Nos finais de carta para relações formais escreve-se “Mit freundlichen Grüßen” (com cumprimentos amigáveis). Quando já se conhece a pessoa, usa-se “Viele Grüße” (muitos cumprimentos). Entre grandes amigos termina-se com “Liebe Grüße” (caros cumprimentos). Não tem como errar. Aquela ansiedade de escolher entre uma proximidade carinhosa ou demasiada intimidade em mandar “beijos”; entre a amizade ou a mera simpatia de enviar “abraços”; e entre o frio formalismo ou o mínimo respeito de escrever “atenciosamente”, é anulada.

O coração aberto do brasileiro é sentido imediatamente ao conhecê-lo pela primeira vez: ele é espremido contra o peito do outro em um abraço apertado. Já o alemão começa apertando a mão de conhecidos e, nas suas relações mais carinhosas, termina com o braço direito passando por trás do pescoço, o esquerdo por baixo do ombro, e ambas as mãos tocando a espalda com os dedos estirados. É recomendado evitar que ombro e peito se encostem.

Num país frio, tudo precisa ser bem e pré-definido. Há fórmulas verbais e gestuais para lidar com: a) relações estritamente formais entre desconhecidos; b) relações frequentes, mas sem amizade; c) amizades; d) relacionamentos íntimos (detalhes desse valem outra crônica). Ninguém vai lhe pegar de surpresa ousando outras fórmulas nem abraçando mais apertado, não se preocupe. Se por acaso um dos pares achar que é hora de passar para o próximo nível, ele vai perguntar se você está de acordo: “Senhora Graeff, posso chamar-vos de Nina e tratar-vos por você?” (transição da categoria A para a B); “Nina, você quer ir a uma festa na minha casa?” (transição de B para C); “Nina, gostaria de lhe dar um beijo” (transição de C para D).

O coração e a casa aberta do brasileiro derretem com seu calor todas essas categorias num caldeirão de ambiguidade. No calor do momento, não se sabe se a relação é de trabalho, de amizade, de sexo, de amor, podendo tornar-se todas elas ou repentinamente nenhuma. Nunca se sabe se é necessário, educado ou desumano dizer “quero que saiba que meu interesse é apenas de amizade”. Corre-se o risco de não ser mais convidado à casa, e, finalmente, ao coração do outro. Perde-se sua amizade e confiança ao tentar defini-la, subsumi-la a qualquer categoria, nome, fórmula, gesto, impondo barreiras a dois corações que até ali estavam abertos um para o outro.

Se estava tão bom sentir-se em casa com você, importava se a casa era sua ou minha? Você sabe onde fica a porta de saída, pode muito bem abri-la sem mim.

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Comments
  • Perla
    Reply

    Sempre um toque, né?

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