Espontaneidade vs. Planejamento (Choques Culturais 1)

 In essays, society

Uma diferença marcante dos brasileiros em relação aos alemães é a espontaneidade. Cumprimenta-se desconhecidos na rua, joga-se conversa fora com o taxista ou a pessoa sentada ao lado no ônibus, vai-se à praia depois do trabalho para aliviar o calor, em seguida à roda de samba com o objetivo de simplesmente sambar. O brasileiro é imensamente aberto, receptivo e flexível, o que causa inveja e admiração em muitos gringos mais apegados a seus planos irredutíveis. A espontaneidade brasileira ocasiona belos passes no futebol e passos no carnaval, ritmos quebrados na música e no cotidiano: nunca se sabe exatamente a que hora o ônibus ou o colega vai chegar, nem se vai chegar.

Duas vezes acompanhei grupos de estudantes estrangeiros no interior da Bahia. Na época, turistas ainda não usavam sua marca registrada – o chapéu Panamá – e mesmo assim se faziam notar pela sua pele alva reluzente, sendo confundidos com Brédji Pitchi (Brad Pitt) e Justchim Bíbi (Justin Bieber). Minha função implicava, muito mais que traduzir línguas e nomes de artistas americanos, transpor choques culturais. Apesar de termos a cada dia uma certa previsão de aonde ir e o que fazer – pegar uma van para conhecer um grupo de samba em Bom Jesus dos Pobres, por exemplo –, os alemães constantemente me perguntavam o que íamos, ou pior, o que estávamos fazendo. Eu respondia:

– Estamos esperando a van para ir a Bom Jesus dos Pobres.

– Mas quando ela chega? Onde fica esse lugar? Quanto tempo leva? O que faremos lá? Quanto tempo ficaremos? Quanto custa a van? Posso ir de chinelo?

– Ela deve vir logo. Quando chegarmos lá, veremos o que acontece.

– Mas quando é logo?

Logo, na Bahia, pode durar até uns seis meses. No nosso caso, costumava durar de meia a três horas. Os alemães enlouqueciam. Não sabiam o que fazer com o não-saber. Só que, diferente de turistas perdidos na selva, estavam amparados por mim e outros assistentes criando a ordem do dia. Embora não houvesse nenhum risco – de passar fome, frio, perder-se, ficar sem dinheiro, ser roubado –, uma ansiedade tamanha lhes habitava. Nós transitávamos pelo paraíso, que se diversificava em mar azul, mata atlântica, canaviais, lagoas de pescadores, e eles pareciam só escutar aquele diabinho que sempre dá dicas ao pé do ouvido.

A van veio depois de uma hora. Na Alemanha, calçar chinelos durante tamanha espera pode acarretar em morte por congelamento. Simples assim, mas também mais complicado, o alemão precisa prever, planejar, determinar tudo o quanto possível por uma questão de sobrevivência – que acaba se tornando de conforto. Precisa economizar, armazenar alimentos, calcular bem a plantação e a colheita, para garantir a linguiça e o chucrute do natal. Precisa de calça termodinâmica, óculos para a neve, luvas com sensor de touchscreen na ponta dos dedos, relógio com GPS, para não se resfriar.

No interior da Bahia, as coisas acontecem na hora que têm que acontecer. Se fizer bom tempo se vai; mas, se por exemplo chover, não se vai. Se o mar estiver pra peixe, se pesca. Se o caminhão vendendo ovos graúdos e miúdos passar, haverá moqueca de ovo no almoço. O ano inteiro se usa chinelo, e quando alguém se resfria, cozinha-se uma laranja com mel. Hoje não tem samba no vizinho; senta-se em frente de casa para olhar o movimento da rua. Todo dia o paraíso está à disposição, assim como o inferno da pobreza, da violência, da falta de infraestrutura. Resta se concentrar no primeiro.

No caminho do seu encontro marcado às 14 horas, o brasileiro deu um mergulho no mar, jogou uma pelada na praia, comeu um churrasquinho no vizinho, ficou uma hora preso no engarrafamento e chegou às 17h30. Falta de planejamento, comprometimento e consideração? Também acho. Mas o compromisso dele, a promessa que fez de lhe encontrar, previa que você também se renderia ao paraíso e ao inferno, valorizando mais o que acontece aqui agora do que o ponteiro do relógio ditador. Choques culturais são traduzíveis e interpretáveis, mas apenas transponíveis após longo tratamento de choque. Se pela terceira vez você ficou esperando o brasileiro por horas e enquanto isso não tomou uma pinga, melhor congelar na sua própria terra – mas leve a pinga de souvenir.

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Comments
  • Perla
    Reply

    Creio que o Caymi iria gostar

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