Do bom dia ao mau ódio
No tempo de José, as redes sociais tinham lugar nas ruas, que também costumavam ser sociais. A rua era local de transações, de troca de informação, do acaso do encontro. O acaso repetia-se; José cumprimentava simpático Dona Zélia todos os dias ao passar por seu armazém no caminho do trabalho, ainda que a considerasse uma chata. Na rua faziam-se negociações, transações; marcavam-se partidas de dominó. A rua dava chance ao imprevisto da comunicação; José ora concordava com Dona Zélia a ponto de formarem dupla de dominó, ora discordava de tal maneira a passar meses apenas cumprimentando-a simpático.
Política da boa vizinhança, estratégia de sobrevivência ou humanismo: relacionar-se era, naquela época, uma prática social bastante comum. Cumprimentavam-se até pessoas jamais vistas, como um sinal de boas-vindas: “Bom dia, não te conheço, mas somos dois humanos em um mesmo lugar, por isso espero que nos sintamos bem aqui neste momento”. Hoje já não precisamos de um bom dia para nos sentir bem perto de outra pessoa, pois enquanto ela está ali, bonita ou feia, Zélia ou José, concordando ou discordando de nós, nosso smartphone com o vídeo compartilhado por um amigo na China nos alegra. As telas garantem nosso espaço de concordância, beleza e alegria, onde podemos escolher a todo momento nossa dupla de dominó, geralmente um avatar mais atraente que Dona Zélia.
No mundo dos avatares tudo é tão lindo; eles têm a cor que pintamos. Meu avatar é de minha cor favorita, azul turquesa, e Dona Zélia é uma chata. Aliás, ela chama o golpe de impeachment. Aliás, ela chama o impeachment de golpe. Dona Zélia tem uma fé estranha da qual eu não compartilho, ao passo que eu gosto de azul turquesa. Na tela do meu smartphone, eu a deleto de meus contatos. Mission accomplished: Dona Zélia não existe mais no meu mundo de avatares. Se tudo é mais lindo em azul turquesa, não resta espaço para vermelhos, bolinhas amarelas, quanto menos para negros e pobres. Para negros, pobres, estudantes de toda classe social, artistas de qualquer cor de pele; ou seja, vagabundos. Ainda assim, esses vagabundos e pessoas chatas insistem em se alastrar, aparecendo na mídia e muitas vezes até por trás da janela blindada do meu carro em alguns cruzamentos. Através do vidro escurecido, insultam-me dizendo “bom dia”.
Toda essa gente estranha amiga de Dona Zélia persiste, ainda que suprimida de minha rede social. Luta ingenuamente pelo direito de existir apenas para me incomodar: não cessa de me dar bom dia, de aparecer na minha janela, de sair na rua e protestar. E, ainda por cima, reclama que vai parar na UTI porque um honesto policial quebrou um cassetete em sua cara! Se deletar os parasitas de minha rede social não os elimina da minha tela e da minha janela blindada, a solução precisa ser outra. O jeito é parasitar nas redes sociais deles desejando sua morte e disseminando o ódio em efeito dominó.
No tempo de José, bastava replicar “bom dia”.
José somos nós; o tempo é hoje. Dona Zélia poderia ser nossa vizinha do andar de cima, o estudante na UTI, nosso irmão ou filho. Cumprimentar, desejar bom dia, oferecer um sorriso: maneiras simples de reconhecer, aceitar e receber a existência do outro, independente de qualquer diferença. Podemos deletar contatos que nos desagradam, mas não as diferenças que toda relação humana pressupõe.
Os abismos entre divergentes visões de tudo o que está acontecendo no mundo me obrigaram a sair da licença poética deste texto. Direitos humanos perderam sua obviedade, e já não se sabe se faço ironia ou apologia à violência, ao saudosismo ou ao progresso, à esquerda ou à direita. Minha única apologia remete a uma forte crença pessoal: a de que escutar, enfrentar e aprender com as diferenças, incluindo as próprias idiossincrasias, é a única chance de se unir ao outro. Nem que seja apenas durante o simples ato de desejar-lhe um bom dia.
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[…] Lançar-se Laçar-se Relacionar-se […]
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