Culpa
Nossa culpa nasce já na barriga da mãe. Causamos dor, desconforto, enjoo, às vezes até raiva a quem nos concebeu, ocupando seu ventre como um corpo estranho durante nove meses. Impusemo-nos a ela, sem mesmo saber se queríamos. Nos casos mais felizes, ela e o pai também queriam, muito; tanto que aquelas sensações desagradáveis pouco ou nada incomodavam: a felicidade diante do milagre era maior. Em casos talvez mais comuns, os pais misturavam o sonho com o susto de ser pais, o júbilo da realização de um grande sonho com o medo de que não dure. A satisfação de ser responsável pela concepção de uma vida alheia com a culpa de sentir-se incapaz de cuidá-la da melhor maneira.
A culpa cresce na barriga do mundo (principalmente do moderno, cf. Freud). Causa-nos dor errar, pois cada falha é repreendida pelos pais, pelos colegas e professores da escola. Causa-nos vergonha não agir como os outros esperam. Uma menina não deveria jogar futebol; um menino não deveria dançar nem chorar. Somos zombados, criticados, censurados com olhares e palmadas que abafam nossa luz. Somos proibidos de agir de acordo com nossas próprias emoções, constrangendo-nos de senti-las. Aquela criança tão cheia de potenciais tem paulatinamente seu poder criativo único embutido dentro de moldes tidos como insuperáveis. A força de seus instintos e emoções torna-se um corpo estranho em sua própria barriga.
A culpa enfraquece a própria barriga. Ventre mole, abandonado, indigno do olhar do outro. Não merecemos o olhar do outro. Não merecemos chorar nem sorrir, dançar nem relaxar; mas pílulas contra gastrite. Não merecemos regozijar nem gozar; mas sermos gozados e abusados. Não merecemos amor; mas sofrimento e solidão. Censuramos nossa cintura, nosso jogo de cintura, nosso poder de tornar-nos plenamente quem desejamos ser. Não aceitamos os outros porque não aceitamos a nós mesmos: criticamos cada palavra dita como maldita, cada ato como desacato. Desencantamo-nos do mundo e de quem somos; desacatamo-nos.
A culpa engrandece na própria barriga. Causamo-nos dor, desconforto, enjoo, às vezes até raiva, por sentirmo-nos um corpo estranho ocupando permanentemente uma sociedade incompatível, pois muito mais limitada, com os nossos desejos e potenciais. Impomo-nos a ela, sem mesmo saber se queremos. Nos casos mais felizes, também queremos muito; tanto que aquelas sensações desagradáveis pouco ou nada incomodam: o consolo de sentir-se mais uma peça de seu mecanismo é suficiente. Em casos talvez mais comuns, misturamos nosso sonho com o susto de descobri-lo realizável; capaz de transcender os limites impostos. Misturamos o júbilo da relização de um grande sonho com o medo de que não dure. A satisfação de ser responsável pela concepção da própria vida, com a culpa de sentir-se incapaz de cuidá-la da melhor, e à própria maneira, até o fim.
A culpa esmorece na própria barriga. É preciso engoli-la, saber seu sabor, reconhecer sua forma, sua maneira de descer pela goela e de se alojar no estômago. É preciso mastigá-la, dissolvê-la, dissecar sua origem para transformar seu rumo. É preciso ruminá-la, perceber suas parcelas de medo, de trauma, de ressentimento, de emoções destrutivas advindas de um passado nunca absorvido, nunca processado, nunca digerido. É preciso transmutar a culpa; expeli-la em adubo para nova muda.
É preciso transmutar os erros: são exercícios de competências (Gilbert Ryle).
É preciso transmutar os medos: modulam força e coragem.
É preciso transmutar as sombras: somam contraste à própria luz.
É preciso transmutar as dores: são amores a serem amados.
É preciso transmutar rancores: rogam por âncoras em novos caminhos.
É preciso transmutar mágoas: molham águas para purificar.
É preciso transmutar desilusões: dão iluminações rumo à verdade.
É preciso transmutar sofrimentos: são sabedorias a desvelar.
Perdoe-se.
amei o desenho