Brincos e a iminência da terceira guerra mundial
Ansiedade e nervosismo em torno da Coreia do Norte e do Trump. Armas nucleares, muros xenofóbicos, mula de Moscou. Após meses, faço uma nova tentativa de me inteirar sobre o que está acontecendo no mundo; abro a página do New York Times e a manchete fala do filme que ganhou melhor drama no Emmy Awards. Dei azar? Fiz meu melhor para uma atualização sobre o globo. Queria saber qual o risco de explodir uma terceira guerra mundial em breve, para não me surpreender e chatear quando e caso ela explodir. Sabe-lo de antemão não vai mudar essas reações, mas somente provoca-las mais cedo e provavelmente em vão: estou ansiosa e nervosa sobre a situação entre a Coreia do Norte e o Trump.
Mauerpark ontem. Um dos símbolos da diversidade e liberdade de Berlim, nos domingos o parque fica cheio de gente e músicos de rua de todo o mundo, contando com um karaokê ao ar livre e um largo mercado de pulgas. Queria comprar um brinco de latão. Berlim é cheia de brincos de latão, cujos preços variam entre 12 e 20 euros. Certa vez, uma colega estava usando o mesmo brinco de latão que o meu comprado em Berlim. Decepcionou-se ao saber disso, pois havia comprado o seu como souvenir de sua viagem inesquecível à Índia. E eu acreditava que o meu tinha sido confeccionado por hippies em Berlim. Ao que tudo indicava, nossos brincos não eram tão especiais como pensávamos. As primeiras barracas no Mauerpark estavam cobrando 20 euros pelos brincos – preço para turistas, pensei. Depois de uma caminhada, barracas de estrangeiros que não falavam nem alemão nem inglês direito surgiram vendendo as mesmas peças por 5 euros – com um saquinho bonitinho feito à mão de brinde. Fiquei contente de comprar dois brincos por menos do que esperava gastar com um só.
Eu não sei o que está acontecendo entre o Trump, a Coreia do Norte e a Rússia, e mesmo se eu passasse o dia tentando descobrir, não iria. O que eu sei é que encontrar um brinco com saquinho de brinde tão barato sendo comercializado por refugiados, migrantes ou hippies tem muito que ver com política internacional e com o meu dia-a-dia, seja em Berlim ou no interior da Bahia. Lá pode-se comprar bem barato artesanato regional produzido na China. Se você decide comprar o mais barato, economizará dinheiro para a sua próxima viagem à Índia. Se escolher o manufaturado localmente custando o triplo do preço, ajudará na economia daqueles que dedicaram a vida à preservação e transmissão de um saber ancestral.
E os tais brincos de latão? Quem os confeccionou? Quem está sendo explorado na sua produção e distribuição, e quem está lucrando com eles – além de mim ao economizar 10 euros? É mais justo compra-los de alemães por 20 euros ou de pessoas de sabe-se-lá-qual-origem por 5 euros, talvez ajudando as famílias necessitadas desses novos comerciantes estrangeiros? Talvez eu deveria ter agido de maneira paternalista, pagando-lhe os mesmos 20 euros – será que o dinheiro seria usado para alimentar quem precisa?
Não há saída: sou uma hipócrita.
Vivo na cidade da diversidade e liberdade porque sou uma hipócrita. Principalmente porque sou ciente de ser uma. O mercado global torna impossível não ser hipócrita; você está atolado nele, mesmo se decide ir morar em uma ilha ou em uma comunidade hippie afastada do sistema capitalista. Ambas fazem parte dele, e você só pode escolher morar lá por ser também parte dele e, portanto, um hipócrita. Mas a sua ansiedade, nervosismo e inconformidade com a injustiça do mercado global e com a iminência de uma terceira guerra mundial lhe cega para esse fato.
Eu não posso mudar o Trump ou a cadeia produtiva global de souvenires – mesmo se parasse de mudar de brinco diariamente. Não posso mudar o fato de que sempre serei uma hipócrita por ignorar, isto é, por não poder saber tudo o que está acontecendo no mundo inteiro, nem como modifica-lo e evitar uma terceira guerra mundial. O que posso mudar é a consciência sobre meu papel individual na sociedade; não o papel global, mas aquele que constrói meu cotidiano, que me conecta com pessoas reais de formas mais ou menos significativas e duradouras.
Não me arrependo de minha compra barata. Mas me arrependo de não ter feito nenhum esforço de me conectar com aquele vendedor, mesmo se no fim das contas não falássemos nenhuma língua em comum. Perdi a chance de conhecer melhor uma dessas pessoas que encontro aleatoria ou intencionalmente no meu dia-a-dia, e, naquele caso, de saber se a nossa troca foi justa para ambos os lados. O dinheiro, quase irrisório, permaneceu como nosso único vínculo – senão como um muro que perdi a chance de transcender.
Quando as relações e as trocas ficam tão irrisórias, incomunicáveis e gravemente injustas, muros se erguem. Não apenas pelo Trump ou pela Coreia do Norte, mas diariamente por mim e você. Cada vez mais nossas distâncias geográficas diminuem, e, paradoxalmente, nossa proximidade também. Enquanto isso, os muros, os medos, a ansiedade e o nervosismo crescem tanto que tornam-se palcos de guerra, sejam da terceira mundial ou da armada com nossos próprios familiares e vizinhos. Nessa, a hipocrisia ainda pode ser derrotada.