Balanços do olhar
Artistas ou não, nem mesmo vendados escapamos das imagens que a luz nos revela. Ainda que elas constantemente nos escapem, a fotografia permite capturar alguns de seus instantes. Não se engane: através de uma câmera não aprisionamos uma parcela do mundo nem do tempo. Na fotografia, pelo contrário, abrimos novas possibilidades ao expor o nosso olhar: uma comunhão daquilo que nos circunda com as nossas próprias vivências. Como num prisma, a luz perpassa nosso olhar transformando-se em inúmeras nuances de um quadro único.
Ajustar o nível de exposição da luz ao fotografar nada mais é do que ajustar o que vemos àquilo que queremos expor, expressar, através de tal captura única. A velocidade do obturador traduz como percebemos o tempo em determinada imagem: pode-se congelar a fluida força de uma cachoeira jorrando longos fios brancos, ou seus pingos nítidos demonstrando sua cristalina pureza. A abertura do diafragma reflete o quanto daquela imagem o fotógrafo deseja abrir: se a grandiosa cachoeira será inteiramente revelada ou se, figurando desfocada ao fundo, apenas servirá para desvendar a grandiosidade de uma mínima flor.
Quão abertos estamos para desvendar os meandros da luz? É o que determina seu balanço em uma foto. Trata-se não simplesmente de uma decisão pela quantidade de claridade e sombra estampada em um retrato, mas da sensibilidade com a qual a luz é absorvida e transformada. Um filme ou ISO mais sensível torna a captura mais frágil, incapaz de absorver detalhes com nitidez, ao passo que mais suscetível à profundeza quase invisível da escuridão. Uma mesma intensidade visual pode ser atingida por um ISO pouco sensível através de aguçados contrastes. Capturar a penetrante força de uma luz no fim do túnel exige o uso do primeiro; reproduzir a exuberância de raios de sol replicando no mar, o segundo.
Aqueles já expostos às profundezas da vida, ao encontro com a escuridão da morte ou com o resplendor da transcendência, seja através da transformação pessoal, da espiritualidade ou da arte, têm seu próprio corpo e alma como um filme de sensibilidade expandida. O artista percebe o mundo a partir de suas experiências, transformando-as em objetos, imagens, movimentos ou sons. Sua arte carrega uma parcela de seu próprio mundo e de sua maneira de sentir o tempo passar; de deixar a luz do mundo lhe perpassar.
Seja para exibir o fundo do oceano ou o alto do firmamento, a sensibilidade do artista é que define o tom da fotografia: um olhar melancólico há de privilegiar a sombra; um olhar vibrante, o resplendor. Cada imagem revelada ao olho nu está igualmente desnuda; é ofício do olhar vesti-la com as nuances da vivência, investindo-a de paixões. A luz acaba por transvestir-se em feixes de arco-íris refratados pelo prisma do artista. O balanço da luz se dá na medida em que ela balança o olhar.
A revista tinha uma certa razão: muito poético ….
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