A linha tênue entre nós
Uma linha tênue separa meu ser do outro. Meu corpo, minha intimidade, meus segredos, meus medos, ânsias e desejos, das do outro. Meu fardo, meus traumas, meu carma; minhas superações, minhas curas, minha transcendência.
Como um hímen, em um ínterim a tênue linha pode ser rompida: abuso sexual, abuso emocional, abuso verbal. A linha afia-se, atravessando corpo e alma, penetrando entranhas, tramando cortes-mortes. Nunca se esquecem. Mas também abuso do silêncio e da indiferença; evitando qualquer ruptura e arrependimento, mantém-se distância da linha:
A linha engrossa, engorda como a própria barriga no inverno, protegendo-nos do frio.
A linha enrijece, fica dura como uma parede de concreto, que não adianta bater a cabeça contra.
A linha envelhece, enche-se de rugas-rancores. Arrependimento pelo que não foi dito nem ousado. Ranzinza, reclama dos outros, do próprio passado, e se reclui.
Falar ou não falar? Agir ou não agir? Pecar pela verdade, pela sinceridade e autenticidade ou esconder-se por trás das aparências? Quanto tempo resiste uma fachada? Quanto tempo resistimos ignorando tudo o que é mais importante? Quantas vezes mais engoliremos o que nos faz mal por receio de tanger aquela linha que aos poucos transformou-se em uma corda ao redor do próprio pescoço?
#metoo
Esse texto não é sobre os abusos sexuais que também sofri e encarei como triviais, e um hashtag não é resposta para nenhuma dessas perguntas. Não há resposta, mas há diálogo. Não é possível mudar o que já passou, mas é possível mudar o que ficou.
A linha da comunicação nos foi arrancada, rasgada, pisoteada, virou essa corda bamba na qual nos custa diariamente cambalear. Mas ela é nossa única ponte.
A linha se enternece, descobre que do outro lado também dói, que lá também faz frio e que ainda resta um pouco de calor para trocar.
A linha emagrece, se acha mais bonita, atraindo e irradiando luz como um fio de ouro.
A linha rejuvenesce, joga com os erros e acertos humanos, brinca com o curto tempo que lhe é dado, e se ri.
Como um hímen, em um ínterim a linha pode ser rompida: um orgasmo, um sorriso cativante, uma conversa ao pôr-do-sol. A linha afia-se, atravessando corpo e alma, penetrando entranhas, tramando a plenitude. Estampa o peito. Afiada, sabe separar o joio do trigo, discernir quando, como e com quem compartilhar tudo o que é mais importante:
A linha teceu filigrana.