Violência Invisível (Maternidade Invisível 9)
Violência psicológica e simbólica, ao contrário do que podem soar, não são violências de mentirinha, teóricas, que só existem no plano das ideias. Elas não se materializam em agressão física de um corpo contra outro corpo. Não chegam a tocar de fato o corpo de outra pessoa com força, causando feridas visíveis como hematomas, cortes, ou mesmo o desfalecimento e o falecimento do outro corpo. O conceito de violência simbólica cunhado pelo sociólogo homem branco europeu Pedro Bourdieu se refere a uma estrutura de violências invisíveis, a maioria nem mesmo conscientes, exercidas dentro de relações hierárquicas de poder. Pode ser a constante pressão em não errar, em se calar e subjugar de um funcionário perante seu chefe; de um negro perante um branco; de um latino-americano perante um europeu; ou de uma mulher perante um homem. Já a violência psicológica é um pouco mais evidente, embora igualmente invisível: um chefe assediando o funcionário; um branco insultando um negro, um europeu discriminando um imigrante latino-americano, um pai constrangendo um filho, ou um homem sendo homem na relação com uma mulher. Um homem exercendo aquilo que o próprio Pedro Bourdieu chama de dominação masculina e hoje, décadas depois, chamamos mais complexamente de patriarcado.
Trazer o Pedro como intelectual para legitimar as violências simbólicas que a dominação masculina acomete as mulheres, em vez das diversas intelectuais mulheres feministas que falam e criticam a mesma questão sob uma ótica muito mais atual e coerente com a realidade da mulher, é relevante. Afinal, Pedro está no topo do poder intelectual (e bélico): é homem, branco, velho (à época da teoria e hoje) e europeu de um dos mais fortes países de seu continente, não me lembro se Alemanda, Englatierra ou Francia. Pedro, por tudo isso, é tão reconhecido e citado indiscriminadamente no mundo inteiro em teses de doutorado, dissertações e TCCs sobre qualquer assunto que não seja física nuclear. Isso tudo embora quase ninguém consiga entender uma única frase sua, que geralmente compreende um parágrafo inteiro cheio de vírgulas, ponto-e-vírgulas e travessões falando, por exemplo, que o conhecimento prático pratica aquilo que o próprio conhecimento pratica, mas não conhece por carecer de prática de conhecimento. Ou seja, não importa o que diga, nem que se faça ou não entendido: Pedro tem sempre razão.
Pedro tem tanta razão que escreveu sobre dominação masculina não como uma cartilha a ser seguida por outros homens, como os escritos do homem branco velho europeu Manoel Kant que, ao dividir hierarquicamente quatro raças colocando no topo do desenvolvimento a branca e na base mais primitiva a negra, justificou a escravização e o genocídio de diversos povos africanos e indígenas, entre outros não brancos. Pedro não, pelo contrário: escreveu para criticar e deflagrar a violência operada sobre mulheres de tal forma que nem as pensadoras mulheres ditas feministas seriam capazes de se libertar da lógica masculina que as domina. Ou seja, para Pedro, que detém vasto conhecimento sobre a violência simbólica operada pela dominação masculina visto que ele mesmo as pratica e define, as mulheres não teriam lugar de fala para falar de seus lugares, já que seus lugares e suas falas são dominadas pela lógica masculina, que acaba tendo sempre razão.
Pois, e não é que o Pedro e o Manoel tinham tanta razão que seguem tendo razão por décadas e séculos passados de seus corpos putrefatos sob jazigos de mármore inabalável, enquanto milhões de corpos sem nome nem putrificaram por terem sido antes jogados no oceano salgado durante o tráfico negreiro, e outros milhares mulheres humilhados molhados de sêmen antes ou depois de serem espancados quando não esquartejados por vontade própria afinal elas estavam provocando com aqueles decotes e minissaias.
Ou seja, não sei para Pedro porque não li esse livro dele, mas para os demais homens de sua sociedade, a ocidental, o homem tem razão porque afinal a mulher escolheu usar símbolos de sedução e deixar seus símbolos sexuais à vista, e ela escolheu não ofertá-los a ele naquela noite. A mulher escolheu não trabalhar para cuidar do filho deles, ao mesmo tempo em que escolheu abandonar o marido, parando de lhe dar atenção, cuidado, reconhecimento e fazê-lo feliz, e consequentemente dando-lhe razão de traí-la, de culpabilizá-la por suas mazelas, de gritar e insultá-la na frente do filho como bem entende, afinal ele é homem e tem sempre razão.
Além disso, o pai do filho deles trabalha; a mãe não. Que aí já toca numa questão que o homem branco velho europeu Carlos Marx identificou e criticou: a exploração e alienação do trabalhador. Para Carlos, trabalhador produzindo lucro para o chefe e o sistema capitalista era só o da fábrica, e não a esposa que tinha que cuidar da prole de futuros trabalhadores para que o marido pudesse ir para a fábrica ser explorado. Então o pai explorado trabalhador da fábrica chegava em casa reclamando da louça suja na pia e da comida que a esposa tinha feito, pois não era aquilo que queria comer depois de ter passado o dia trabalhando exaustivamente. Justo da louça e do fogão, símbolos tão desejados pela mulher, adquiridos com o suor do homem na fábrica e com a poupança da mulher. E depois de dormir a noite inteira para descansar do tão abusivo trabalho na fábrica, o pai despertou por causa da mãe que deixou as crianças já de pé correndo pela casa há duas horas fizessem barulho e o acordassem o trabalhador, que então precisou lhe informar reiteradas vezes o transtorno que causou.
As camisas permaneceram molhadas dentro da máquina, foram guardadas ainda úmidas, quando não encolheram em uma secadora ou não foram penduradas com todas as casas de botão fechadas e colarinho encaixado para o lado direito do cabide, simbolizando o total descaso da mãe para com os objetos do pobre trabalhador explorado pela fábrica. O lixo sempre retirado pelo trabalhador ao sair para a fábrica putrificou proliferando vermes que se alastravam pouco a pouco por todo ambiente de trabalho da mãe, a cozinha, mas isso só porque ao avistá-la removendo o saco cheio de bosta de bebê de uma das lixeiras, entendeu que ela removeria todos, caso contrário deveria ter-lhe comunicado para evitar o mal-entendido que se tornou episódio de violência, embora sem contato entre os corpos, físico na medida em que gritos retumbantes também tocam e agridem o tímpano dentro do ouvido, além da própria pele, ainda mais quando advindos de uma posição superior, erguida, impositiva, de voz grave, dominante, masculina, perfurante e penetrante como o próprio falo, martelando dois corpos menores e mais vulneráveis sentados no chão, um feminino e outro infantil.
Ouvido: símbolo de escuta e cuidado. Grito: símbolo de independência ou morte.