Só quem é mãe sabe, e esquece (Maternidade Invisível 1)

 In crônica

Amaro era o bebê perfeito até o primeiro mês de vida, quando passou a acordar diversas vezes à noite por causa de gases. Na consulta de um mês, a pediatra explicou que era normal e que passaria. Eu, com muita inocência, perguntei quando, esperando uma resposta em quantidade de dias, ao que ela reagiu com um sorriso muito tranquilo: “com três meses passa”. Não pude conceber a possibilidade de sobreviver a mais do que cinco dias acordando a cada 30, 60 minutos toda noite para me levantar, cantar, dançar, embalar, chacoalhar o bebê até ele parar de se contorcer de desconforto e voltar a dormir. Tentei tudo o que é recomendado para aliviar seus gases, até música para o movimento de pedalada criei e todas as noites para Amaro cantei e contei quantas faltavam para chegar aos mágicos três meses, sabendo que eles não tinham data exata. Com três meses e meio os gases pararam.

 

Duas semanas depois de voltar a dormir entre três e quatro horas seguidas, acordando apenas para amamentar e não mais para aliviar desconfortos constantes do bebê, ele voltou a acordar entre 5 e 6 vezes durante a noite e a adormecer com muita dificuldade. Nem a pediatra nem ninguém que me sorria com tranquilidade dizendo que o problema dos gases “com 3 meses passa” me havia alertado que logo depois viriam outros inúmeros motivos para atordoar as noites daquela mãe que mal tinha se acostumado com noites mas pacíficas de sono. Quando do salto do 4º mês, no qual Amaro começou a repetir sílabas, ninguém me disse que viria o do 5º, em que ele sentaria, nem o do 6º, em que ele ficaria de quatro, nem o do 7º em que ele engatinharia, o do 8º em que ele ficaria de pé, o do 9º que ele começaria a sentir ansiedade da separação materna que dura anos, nem que em uma segunda camada de sobrevivência puérpera dentes nasceriam um atrás do outro não de um dia para outro mas aos poucos doendo e causando diarreia durante cinco semanas que viria até no meio da madrugada em noite anterior à manhã da primeira prova da mãe prestando concurso público fazendo pausa para amamentar com a fiscal controlando por quanto minutos para contabilizar no tempo para terminar o texto de 11 páginas que definitivamente foi o obstáculo mais fácil a ser superado por aquela mulher que há apenas 6 meses havia nascido mãe.

 

Só quem é mãe sabe, mas esquece. Só quem é mãe não é só quem pariu: não exclui o pai, os avós ou pais adotivos. Só quem é mãe é quem sabe o que um bebê precisa para sobreviver não nos primeiros dois anos, mas nos seus primeiros 63.072.000 segundos de vida. Só quem é mãe sabe que é preciso estar atento a todo instante ao bem estar do bebê. Só quem é mãe sabe também o que é não saber o que o bebê precisa, mas aprender só no ímpeto de ter que dar um jeito de fazê-lo sobreviver e se sentir bem.

 

Mas quem não é mãe é muita gente; é gente que tempo de mandar no mundo; que tem tempo para enriquecer; é gente que não se importa ou que até se importa, mas que não sabe, pois nunca foi mãe. Afinal mãe é tão óbvio que ninguém vê. E se tanta mãe é mãe e qualquer mãe é mãe – um privilégio realmente democrático –, deve ser muito fácil, simples, corriqueiro, óbvio, ser mãe. A cegueira perante a maternidade não é mero desdém ou subestimação; é uma desvalorização completa, que não reconhece as dificuldades, não reconhece o trabalho ininterrupto e completamente abdicado, devoto, eficiente, comprometido, pontual, árduo de 168 horas semanais. É uma desvalorização generalizada, que atravessa classe social e gênero; uma invisibilização constante, uma cegueira que acomete a todos, inclusive e, mais gravemente, as próprias mães.

 

Quem é mãe esquece. Antes eu pensava que a amnésia das mães sobre os primeiros meses de seus filhos já mais crescidos era um mecanismo biológico inconsciente de, por um lado, garantir que ela tivesse coragem de gerar mais de um filho e, por outro, de sobreviver, de continuar existindo, de voltar a ser um indivíduo quando a criança crescesse. Mas hoje entendi que as próprias mães são vítimas do desprezo que a sociedade tem pelo seu trabalho muito injustamente não remunerado, contribuindo à invisibilização de seu próprio sacrifício diário e vitalício. As próprias mães ficam cegas e desmemoriadas, chegando ao ponto de martirizar mães com pouca experiência ou simplesmente experiência diferente da sua.

 

Amaro é um bebê perfeito; o que não elimina as dificuldades de cuidar e lidar com ele. Mas talvez se eu não registrasse aqui uma síntese pífia de alguns desafios que seus primeiros meses de vida impuseram, e os esqueceria. Eu os “dementicaria” (do italiano dementicare): eu os excluiria de minha mente, porque afinal não faz sentido guardar na memória a imagem ou o odor das mais de 2 mil trocas de fralda em um ano, embora a minha lombar jamais as esquecerá. Mas, principalmente, não faz sentido guardar na memória algo que não vai constar em meu currículo, que não vai pagar as minhas contas nem um celular novo; algo que não é um prêmio, não é uma promoção, não é um convite para viajar ao estrangeiro, nem mesmo é considerado curso de capacitação!

 

Afinal, o conteúdo do que eu atento, aprendo e conquisto a cada segundo com meu bebê, perfeito ou não, embora possibilite a existência e desenvolvimento do adulto que vai construir o nosso futuro, tem o mesmo valor daquilo que eu jogo fora embalado em suas fraldas.

 

Enquanto o mundo gira só porque a gente gera, ou esquecemos ou enlouquecemos.

 

 

 

 

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