Ursinho da infância

 In essays, self-improvement

Perdi meu ursinho de pelúcia da infância. Já faz vários anos. Tentei substituí-lo por jantares à luz de velas, viagens a oceanos azul-anil, cafunés em meus cachos sob o abajur; mas nunca mais encontrei a mesma sensação de segurança. De saber que posso voltar pro John Lennon – sim, esse é seu nome devido aos seus óculos escuros redondos –, que ele estará vestindo o mesmo macaquinho amarelo, com o mesmo nariz rosa e sorriso imovelmente estampado, me esperando de braços abertos. Que ele estará do mesmo tamanho, me esperando, mesmo sabendo que cresci.

Cheiro meu travesseiro e não reconheço o cheiro de minha infância. O aroma daquele tempo em que John Lennon, junto dos meus pais e dos outros Beatles, tornavam tudo possível para mim: sorvetes de morango que caíam no chão e magicamente reapareciam em minhas mãos com uma segunda chance de degustá-los; voltas de carrossel que pareciam eternas e capazes de me cavalgar às estrelas; brincadeiras com regras que eu mal compreendia, e mesmo assim davam sentido a um dia de sol ou de chuva, fazendo a noção de tempo sumir. Que o dia estivesse prestes a acabar já não importava, pois na cama eu reencontrava sob meus braços John Lennon, e com ele a certeza de que o amanhã seria mais uma vez cheio de sonhos e aromas que eu bem conhecia.

O olor de amêndoas amargas nunca cheirado, mas somente imaginado através de livros em castelhano, me levava para longe de John Lennon. Prometia outras estrelas, estrellas, outras sonoridades e cores; um cielo maior que o céu azul que eu via diariamente. O próprio John Lennon veio da Argentina, me ensinando que o céu-cielo-Himmel não conhece limites: em sua terra natal, Bariloche, a branquidão da neve na Terra confunde-se com as nuvens no firmamento. Eu nunca tinha visto neve de verdade, mas John Lennon tinha. Apesar de frio, brincava-se naquele céu branco com esquis. Eu quis esquiar também.

Nas montanhas de neve habita o silêncio. Um silêncio que não é vazio; pelo contrário, faz-nos escutar a potência do mundo. Como nos contos de fadas, de Grimm, e nas fábulas de la Fontaine, os bosques circundando os picos das montanhas são mágicos. Embrenhar-se pela floresta e vislumbrar os brincos de cristal formados por cachoeiras congeladas, patinar sobre o lago de gelo sob um céu sem limites, equivalem a voar sem asas.

Fui voar sem asas. Fui voar sem John Lennon, arriscando nunca mais vê-lo ou sentir seu cheiro em meu travesseiro. Tudo por causa do dia em que ele me cochichou ao pé do ouvido que seus óculos escuros arredondados não eram apenas charme. John Lennon me pediu que eu arriscasse tudo, até mesmo não nos encontrarmos mais, para que eu pudesse ver tudo o que ele não podia. John Lennon era cego.

Foi apenas voando só, sem asas e sem meu ursinho, que pude sentir seu cheiro doce de infância em cada canto do mundo, em cada encontro com o desconhecido, em cada céu que vira cielo, lá em sua verdadeira morada: meu coração.

 

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Comments
  • Perla
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    Mas ele está aqui…sempre esperando a possibilidade do retorno . Do mesmo modo em que em minutos o encontramos e eu fotografei!!!!

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