Diabinho vs. Anjinho (Choques Pessoais 1)  

 In crônica, auto-ajuda

No alto dos ombros, passando a espalda, moram dois seres fantásticos. Lá em cima, onde a cabeça altiva pensa-se separada do corpo, cada uma de suas orelhas não raramente têm plena certeza de escutar, independente de vontade ou disposição, palavras ora sábias, ora desoladoras. Ao pé do ouvido direito flutua um belo Botticelli: um anjo doce de asas leves, cabelos cacheados como as ondas do mar. À esquerda*, um astuto diabo cor de sangue senta-se, cada dia mais pesado, a afiar e enfiar suas guampas em seu encosto, o pescoço.

Não se pode questionar a sabedoria de cada um. Ambos os seres são mágicos; sabem de coisas que a cabeça ingênua nem imagina. Mas, enquanto o anjo acredita que tudo ficará bem, o diabo faz questão de que tudo fique mal. Ele teima, bate o pé, puxa a orelha, tapeia a cara, grita, sapateia, morde o ombro, arranha o pescoço; não desiste de jeito nenhum. Aliás, quanto mais é ignorado, de mais energia se nutre para incomodar. O anjo, lá do outro lado, sabe que não vale a pena gastar tanto esforço com mesquinharia. Entre um bocejo e outro, farto das artimanhas inúteis do diabo, sopra ao ouvido o seu bálsamo celestial: “não se preocupe, está tudo bem”.

O diabo se esmera no agito, na ansiedade, na dúvida de não saber; não saber se tudo vai acabar só mal ou terrivelmente, irreversivelmente, dramaticamente, péssimo. Observemos a diferença de abordagem no recebimento de um elogio:

Diabo: Essa pessoa não entende do que está falando.
Anjo: Talvez ela tenha razão.
Diabo: Ela só fala isso porque quer alguma coisa de mim.
Anjo: Talvez ela tenha sido honesta.
Diabo: Ela me elogia agora, para depois me apunhalar pelas costas.
Anjo: Talvez ela tenha boas intenções.
Diabo: Seu elogio era na verdade uma crítica disfarçada.
Anjo: Talvez fosse um elogio genuíno.
Diabo: Não pode tratar-se de um elogio a ser levado a sério, que realmente condiga com a minha qualidade, que obviamente é baixa, e que se impressiona alguns, é porque não têm referências suficientes em que embasar seus julgamentos, já que aqueles que sabem deveras discernir boa qualidade reconhecem que não a tenho e que eu nem deveria estar aqui expondo minha ignorância para pessoas tão ignorantes que até a elogiam, ainda que o façam apenas para tirar alguma vantagem de mim, pois certamente são mais espertos do que eu.
Anjo: (boceja).

Até o anjo com toda sua bondade fica com preguiça da laboriosidade incansável do diabo. Suas estratégias diabólicas de auto-sabotagem se multiplicam, tornando-se cada vez mais originais. É no fundo das memórias mais traumáticas que encontra material para sua criatividade. Quando era criança, os pais esqueceram de buscá-lo na escola. A cabeça nem se lembra mais daquele dia, mas no corpo habitam aquelas horas de insegura e solitária espera, horas em que se sentiu tão esquecido e abandonado. Nenhum elogio na vida adulta lhe tira a certeza, impregnada em seu peito desde então, de ser incapaz; de ser indigno de amor.

O anjo toca trombetas, voa em órbita pela cabeça, ilumina as sombras, enxerga beleza em tudo o que toca, atrai elogios, carinho, amor. Mas na gangorra o diabo vence, de tão pesado seu saco sem fundo de mágoas, angústias e medos. Captura o anjo como a uma borboleta, transformando o saco em um casulo apertado, sem espaço para as asas, trombetas, nem ar. Apenas o suficiente para bocejar.

Mas um dia o anjo cansou-se de verdade: espreguiçou-se lentamente, como de costume, mas decidido a dar um basta às brincadeiras sem graça do diabo. Lançou-lhes luz e descobriu-as, sim, engraçadas. Cheias de graça e até graciosas. O diabo é tão ridículo se passando por sério, que não dá para não rir. Que vozinha fininha, esganiçada, soltando bobagens como se fossem dramas, como se fossem verdades! Suas meigas guampinhas são como duas penas de ganso que não causam mais do que cócegas!

Gargalhemos: aquela gárgula ali estava apenas para fazer-nos rir de nós mesmos, espantando o mal que nos acometemos.


* O diabo deveria ir para Cuba.

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Comments
  • perla
    Responder

    E isso a eterna dualidade entre o bem e o mal. Sem mal o que seria do bem. Onde estariam as outras nuances?
    O diabo em Cuba, ao menos estaria dançando. E o anjinho …No Vaticano?

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