Devo trabalhar tanto!

 In crônica, sociedade

“Devo lavorare tanto!”, repetia Elena convicta. Aos seus quase três anos de idade, a sobrinha de Luciano rasgava e colava com a minha ajuda pedaços de fita crepe em uma caixa de papelão. Nada mais fazia que imitar o tio enquanto o esperávamos terminar seu serviço: montar uma bicicleta para a legendária corrida L’eroica na Toscana. Admiradora de Luciano, Elena aspirava ser como ele, unindo comprometimento, seriedade e muito trabalho na construção de algo importante. Íntima conhecedora da paixão do tio por bicicletas, mal sabia a pequena que nenhum daqueles esforços são considerados importantes no dia mundial do trabalho.
A convicção de Elena resulta de ver os adultos à sua volta sempre seriamente ocupados com algo, exceto nos momentos em que brincam com ela descontraídos, sorrindo e falando com vozinha infantil. Ao tomar a fita crepe na mão, a menina deixou de lado seu mundo de brincadeiras, sorrisos e descontração – a vozinha infantil era inevitável – para entrar no mundo dos adultos; um mundo de trabalho, seriedade e convicção. Enquanto ela se julgava trabalhando, eu lhe chamava de artista e seu avô sabia que brincava. Somente Elena se levava a sério, acreditando na importância do que fazia.
Às vezes brinco de acreditar que a origem das palavras nos revela sua essência. Comecei este texto em inglês, investigando a etimologia de work (verbo): fazer, agir, construir, produzir, almejar algo – como Luciano com sua bicicleta e Elena com sua caixa de papelão. É curioso que apenas em inglês a palavra corrente para se referir a trabalho tenha uma conotação inspiradora até para uma criança. Seus correspondentes em alemão, Arbeit, em italiano lavoro, sugerem atividade extenuante – não é brincadeira. Elena só não ousaria brincar mesmo com a palavra que usamos em português e outras línguas latinas, trabalho, que surge de tripalium, nome de um instrumento de três estacas afiadas utilizado na antiga Europa para torturar trabalhadores.
Herdamos a ideia de que se esforçar para produzir algo importante equivale a ser torturado. O algoz principal é o empregador, certamente. Mas talvez mais poderosos sejam aqueles à nossa volta, que nos olham torto se não enxergam nossa tortura. Talvez por isso não se considere como trabalho colar fita crepe em uma caixa de papelão, montar bicicletas, estudar, fazer música ou escrever em um blog, por mais extenuantes que sejam. Tolice. Todos sabemos a verdadeira razão: trabalho é só aquele que traz dinheiro; senão muito dinheiro, pelo menos algum com garantia de chegar no final do mês.
Compartilhamos com Elena a convicção de que nossos esforços têm um valor, porém em nosso caso apenas o monetário. O salário, independente de ser alto ou baixo, digno ou não, é capaz de justificar e legitimar qualquer tipo de tortura, de horas extras não pagas até abuso sexual, passando pelo pior: a repressão das próprias paixões e, com elas, do sentido da própria vida. Devemos trabalhar tanto! O tanto quanto possível para esquecer que nossa vida fazia sentido antes de seguirmos nossa profissão! (Profissão se referia um milênio atrás a uma declaração pública antes de adentrar uma religião; um ato sério de convicção).
Elena acreditava que imitando seu tio dava sentido à sua ainda curta vida. Anos depois entenderá que dedicar a tarde ao que gosta junto a pessoas que ama, mesmo que na idílica campanha do sul da Itália, não paga a papinha de todo o dia. Ela escolherá uma profissão e buscará algum lavoro extenuante que lhe forneça um salário e um futuro, ainda garantidos no hemisfério norte pelo tripalium cada vez mais afiado aplicado em países do hemisfério sul. No Brasil, este 1o de maio pode entrar para a história como o último Dia dos Trabalhadores que contavam com direitos trabalhistas, salários, estabilidade e futuro. Poderemos reassumir as origens esquecidas da palavra e chamá-lo de “Dia dos Torturados”.
Devemos trabalhar tanto! Tanto, que nada mais terá importância, nem sentido.

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Comments
  • Ana
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    Nina que texto maravilhoso!!!

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