O dia em que parei de paquerar apps

 In essays, self-improvement

Faz um ano que larguei meu vício. Ainda me lembro bem: em um sonho, eu gritava desesperadamente “eu não aguento mais o Tinder!”. Assim que acordei, terminei com ele. Devo também confessar minha infidelidade: eu não estava paquerando apenas o Tinder, mas outros apps de relacionamento. Porque o Tinder não me dava suficiente atenção e carinho, comecei a flertar com outros candidatos. Talvez eles soubessem uns dos outros; havia um clima muito estranho entre nós.

Eu abandonei o Tinder, e ele nunca mais me procurou. Por um lado, imagino que estivesse muito ocupado atendendo tantos viciados. Por outro, talvez ele esperasse que eu voltasse atrás, como de costume; tantas vezes o deletei de meu celular e reinstalei de novo. Vai ver ele também se sentiu usado. Analisando a situação hoje com distanciamento, acredito que eu não tenha terminado exatamente com ele, mas com o círculo vicioso em que nosso relacionamento entrou. Ele deve estar melhor sem mim.

O Tinder ficaria muito contente de saber que eu também tenho passado muito bem. Quando se finda uma relação abusiva, tem-se a oportunidade de reestabelecer o equilíbrio da própria vida. Primeiro, porque você deixa de exaurir seu polegar deslizando sempre para a esquerda durante um concerto em que não encontra ninguém atraente. Consequentemente, também deixa de deslizar para a esquerda e ignorar pessoas que não necessariamente acha atraentes no mundo real: se você não vê, não fala e não se conecta com as pessoas à sua volta, como pode achá-las atraentes? Se não através de fotos escolhidas a dedo e editadas para autopromoção em perfis de apps? E, acima de tudo, por que você está tentando tão arduamente conectar-se com pessoas atraentes, e não com pessoas em geral, sobretudo com você mesmo? Atraente não significa bela, mas alguém que atrai o olhar. Você está viciado em paquerar APPs – Attractive People Pics (Photos de Pessoas Atraentes).

Sua necessidade de se relacionar com apps pode estar alimentando a sua necessidade de se relacionar com apps. É um círculo vicioso. Eu juro por Deus que não sei como tantos aplicativos de paquera se proliferaram em meu telefone. Parece que eles estavam se reproduzindo uns com os outros – ao contrário de mim. No momento em que percebi que se rebelavam contra mim, nutrindo-me de mais e mais ansiedade e desespero, assassinei todos eles. Sem dó nem arrependimento.

Entretanto, alguns meses depois percebi que um deles continuava disponível no navegador de meu laptop. Adivinha: comecei a sair com um cara atraente; chegamos mesmo a estabelecer o que outrora chamava-se de “namoro”. Até que ele começou a me perguntar, entre outras coisas, sobre meu relacionamento com o Tinder. Pobre Tinder, construiu uma péssima reputação ao longo dos anos. Embora tivéssemos terminado meses antes, o namorado tinha ciúmes dele. Julgava-me por eu ter-me relacionado com o Tinder. Que bela vingança: após tanto tempo, o Tinder me passou a perna. Eu devo ter merecido.

É desnecessário apontar outros diversos julgamentos preconceituosos revelados por aquela Pessoa Atraente ao longo de quatro meses de um namoro feliz – que ela terminou com base nos mesmos julgamentos – para contar a moral da história: não há como prever o que se esconde por trás daqueles APPs. Não há como saber de antemão se alguém é de boa família, de bom berço, como acontecia em tempos feudais. Não há referências, endossos, nem opiniões e comentários de usuários anteriores daquelas fotos de perfil, que poderiam muito bem pertencer a psicopatas e serial killers.

Sim, apps podem igualmente revelar lindos seres humanos, amigos para a vida inteira e namorados fiéis. Mas tudo isso pode-se encontrar a qualquer momento na vida real, seja no ônibus ou no parque, quando nos abrimos para conhecer pessoas independente de suas fotos de perfil. Abrir-se significa também deixar o tempo fazer seu trabalho: em vez de perder-se em um círculo vicioso de ansiedade, desespero e descrença de um relacionamento feliz – que deslizes com o polegar e matches prometem oferecer muito rapidamente –, podemos voltar para nós mesmos, para nossas reais necessidades, deixando a vida fluir em seu próprio ritmo (amém). Tenho feito muitos amigos mendigos e esquizofrênicos pelas ruas ultimamente. Não mendigam mais amor do que eu usava fazer, nem vivem em mundo mais irreal do que o dos apps.

Não estamos usando apps de paquera para nos relacionar; estamos nos relacionando com apps. Estamos paquerando nossas próprias ilusões de como uma foto bonita poderia suprir nossa necessidade de atenção, auto-estima e dignidade. Completa-se um ano de minha appstinência e eu nunca me senti tão digna de amor, equilibrada e livre, como agora. Comecei a me relacionar com o mundo à minha volta e dentro de mim. Por isso, apesar de eu não sentir sua falta, Tinder, agradeço por todas experiências incríveis que tivemos juntos e por tudo que aprendi com você. Meus melhores votos.

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Comments
  • perla
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    Excelente! Uma cronica de nossos dias e muito bem escrita

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