Perfeccionismo de pianista

 In essays, self-improvement

Certa vez, um destacado pianista erudito alertou-nos, aspirantes de pianista, durante uma máster class: “Só na China existem 40 milhões de pianistas” – uff, vai ser difícil fazer sucesso na China. Apesar de todos os pesares, continuamos aspirando a uma carreira de concertistas, de embaixadores da perfeição musical. Mesmo figurando entre os piores de nossa própria escola.

Talvez por tocarmos sempre sozinhos, enquanto os músicos de orquestra passam constantemente por seleções hierárquicas que vão de spalla à última estante dos segundos violinos, tendemos ao autismo. Não precisamos de mais ninguém para executar com nossas duas mãos mágicas uma sinfonia inteira, nem para nos confirmar que possuímos mãos mágicas e eleger-nos como primeiro pianista. Sabemos que somos, ou ao menos um dia seremos, o primeiro pianista. Afinal, somos o único músico com quem ensaiamos diariamente.

Um instrumento tão fascinante; não há tia que não queira escutar-nos com a valsa minuto de Chopin. Não há parente, vizinho ou colega de escola que não nos admire por tocar piano. O mundo ao redor alimenta nosso mundo interior, certificando-nos de que somos únicos (entre outros 40 milhões de únicos só no lado oposto do planeta). Tornamo-nos cada vez mais especiais, depreciando a valsa minuto da tia ao dominar uma balada de Chopin. Depreciando Für Elise de Beethoven, que o avô tanto gosta de ouvir, pois muito mais interessante e difícil é sua sonata Hammerklavier. Depreciando quem não conhece nenhuma dessas peças, já que não é tão especial como nós.

De tão fascinante, o instrumento torna-se frustrante. Apenas a elite de pianistas únicos é capaz de reconhecer os nomes, os compositores, a qualidade e a dificuldade das peças. Essa elite, por ser composta de pessoas únicas e especiais, é inevitavelmente implacável. Via de regra, nenhum ali se compara a um Artur Rubinstein ou a um Claudio Arrau. E, mesmo assim, considera-se juiz da perfeição artística. Lang Lang, o pianista mais famoso do globo terrestre, é apenas um showman sem musicalidade. Rafal Blechacz, vencedor do maior concurso de piano do mundo, até tem musicalidade, mas sua interpretação não convence. Qualquer um dos 40 milhões de pianistas chineses tem técnica perfeita, mas não entende nada de música.

Seguindo essa listagem, pode-se calcular que 99,9% dos pianistas vivos sejam frustrantes. Entre os mortos, a taxa cai, pois deve-se respeitar o renome sedimentado de um Sviatoslav Richter ou de um Arturo Benedetti Michelangeli. Considerando essa estatística, pianistas são frustrantes; e acabam frustrados por não pertencerem ao 0,1% restante. O que não lhes rouba a certeza de serem únicos e especiais; o mundo é que não tem a capacidade de compreender isso. E em vez de fruir de sua perfeição artística, lhes frustra.

No final das contas, os 40 milhões continuam tocando piano na China, e nós, por uma questão matemática, não nos tornamos concertistas. Alguns tornaram-se professores, profissão honrosa, porém distante da de concertista. Tão distante que a amargura contamina suas aulas. Outros, incentivados por tal amargura, abandonaram o instrumento. Mas o instrumento nunca lhes abandonou. Após 8 anos sem tocar piano, adquiri um e comecei a tomar aulas de improvisação. Quatro aulas e prática diária revelarem-se, antes de tudo, uma terapia contra o perfeccionismo e sua consequência direta: a auto frustração.

Sejam 4, 40 milhões ou 4 bilhões de pessoas crendo-se especiais, as estatísticas alertam para o fato de que não somos únicos, nem perfeitos. Ou ainda mais amedrontador – atenção, spoilers! –: de que a perfeição não existe. O que existe é uma prisão onde o perfeccionista se enclausura. Um pianista que se compromete mais com o que acontece aqui agora, e não com a reprodução exata de uma partitura, de uma elite e de uma tradição, descobre no erro a novidade, na imperfeição sua inspiração. Ele se liberta da convicção de ser único, passa de pianista a artista, e transforma sua frustração em frutos.

Meu último professor de piano erudito me disse que eu só passaria no exame final se fosse capaz de fazer milagres. Foi quando então virei santa milagreira.

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Comments
  • perla
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    Coragem nas criticas aos coleguinhas…e um excelente final de texto!

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