Era uma casa muito engraçada

 In self-improvement

Tinha teto duplo e coisas demais. Os moradores, Frau e Herr Wenig, pareciam complexados com o seu sobrenome, que significa “pouco”. Compensaram na quantidade de móveis, cores das paredes, almofadas, televisões, quadros de palhaços tocando violino, plantas artificiais e naturais, espelhos, papéis de parede nas portas, toalhas de mesa, pinturas de tinta plástica nos vidros e azulejos, tapetes persas sobre carpetes claustrofobicamente amontoados como em uma listagem infinita de palavras vazias. Trinta e três anos de aluguel em um apartamento de Berlim Ocidental colecionando milhares de objetos, mas apego nenhum: Frau e Herr Wenig deixaram-me tudo e, com tudo, a liberdade de fazer o que quiser com aquilo.

Durante a visita coletiva do apartamento, duas certezas me acometeram: a de que eu adentrava uma mina de ouro, que faria dinheiro vendendo tudo aquilo no site do mercado livre; e a de que eu reformaria parcialmente a casa, caso ficasse mais de seis meses ali. Passaram-se cinco anos e só pintei o corredor de branco porque a cor anterior marrom-telha não permitia a ninguém respirar. Uma mina de ouro é o que seria necessário para pagar a reforma, mas dos maravilhosos móveis comprados ainda com marcos alemão, feitos de madeira rústica se desmontando, não sairia um centavo. Conformismo ou resignação, o que restou foi agradecer: Frau Wenig me deixou tantos objetos que eu não sabia nem que poderiam ser úteis um dia, nem que estavam escondidos em alguma parte do apartamento. Precisando de um copo para caipirinha? De um amassador de batatas para preparar nhoque? A casa de Frau Wenig realiza todos os seus desejos. A vantagem de ser adotada por uma casa, é que ela sempre te surpreende com seus segredos.

A casa da Frau Wenig me adotou e eu adotei-a de volta. Iniciou-se um diálogo fértil entre nós. Com duas paredes-armários de portas inteiramente espelhadas em meu quarto, além de espelhos espalhados por outros cômodos, é inevitável me evitar. A casa da Frau Wenig está sempre puxando a minha orelha, mostrando meus defeitos, minhas rugas aumentando. Mas a casa de Frau Wenig também está sempre puxando meu saco, sussurrando em meu ouvido como estou bonita e sábia. Revelando-me como as minhas imperfeições, da mesma forma que as suas, são belas. A metade amarela da sala de estar me lembra de minha luz e tranquilidade, enquanto que a metade vermelha minha força e audácia. Ao retirar os móveis da parede vermelha, descobri suas sombras amarelas e delas criei novo horizonte, onde a divisão entre o céu e o mar fica a cargo do olhar.

A casa de Frau Wenig tornou-se uma entidade. Fez rir tantas pessoas diferentes que se tornou sua grande amiga. Escutou o choro delas também; lhes recebeu como fossem seus filhos. Dançou e gritou com elas, lhes envolveu com comida, bebida, carinho e arte. Enquanto a casa a todos abraçava, eu aprendia a abraçar as suas e as minhas imperfeições. Aqui todos os defeitos, todas as diferenças, todas as cores de parede, todas vulnerabilidades, sorrisos e lágrimas, são acolhidos e festejados como qualidades, como lindas nuances da diversidade humana.

Sempre digo que esse apartamento não é meu, e sim da Frau Wenig. Eu o teria reformado, trocado os móveis, pintado todas as paredes de branco. Eu teria anulado tudo o que a Frau Wenig me deixou materialmente, e todas as risadas que até hoje cada um de seus detalhes provoca. Eu teria anulado todas as possibilidades de ressignificar a sua casa, o seu mundo, a partir da reinvenção do meu. Porque não o fiz, o tempo aqui dentro passou e nos transformou para sempre. A casa da Frau Wenig me ensinou o significado da palavra lar: um lugar onde se é livre para ser.

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