Do fardo da cruz ao fado da criação

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Jesus pendurado na cruz foi uma jogada de marketing genial. Deus sabia o que fazia, ainda mais quando pintou a pele de seu filho árabe de branco e seus olhos de azul. Nenhuma outra marca conseguiria criar nada melhor: nem o “just do it” da Nike, nem a maçã do pecado da Apple. Afinal, nem todo mundo é assim tão cheio de vontade de agir, quanto menos de morder a maçã do paraíso. Mas todo mundo, todas as pessoas no planeta Terra, compartilham um ponto em comum: o sofrimento.

Não tem como não se identificar com Jesus: o cara só fez o bem e, mesmo assim, comeu o pão que o diabo amassou: foi injustamente condenado, carregou uma cruz por horas, foi pregado nela e ainda abandonado pelo próprio Pai. Eu passei meus maus bocados, mas não sofri metade do que Jesus sofreu. Dá até um certo alívio olhar para ele, que teve que suportar coisa muito pior. A Maria então nem se fala. A pior coisa para uma mãe é ver o filho sofrer e não poder fazer nada. Você dá educação, comida, roupa lavada, tudo para que ele possa seguir com a própria vida, e mesmo assim ele se dá mal.

Não sei se o sofrimento de Jesus é assim tão cultuado para que nos identifiquemos com ele, ou se para nos aliviar. Acho que é os dois. Primeiro reconhecemos em alguém tão famoso e honorável nossa própria dor; criamos empatia por ele. Depois, nos resignamos de nosso próprio fardo, já que alguém mais perfeito que nós, sobre humano, também sentiu dor. Também foi injustiçado e vítima do mal do mundo. E muitas vezes paramos aí na metáfora. Carregamos essa metáfora no pescoço, no terço, no espelho retrovisor do carro. Comemos peixe na sexta-feira santa. Dois dias depois – alegria! Jesus ressuscita e nós podemos comer muitos ovos de chocolate. Simples assim.

Hoje em dia apegamo-nos a metáforas mais contemporâneas para nos resignar de nossa cruz. A serpente do paraíso enroscou-se na quase cruz da medicina, com a qual nos identificamos cada vez mais. Afinal, ela produz diversos remédios, braços mecânicos e diagnósticos para os nossos males. E aquilo que ela não produz ou não sabe produzir, mas que alivia nossa cruz, chama de placebo. Ou superstição também. Acreditar em Cristo, assim não sério, mas só um pouquinho e quase de mentirinha, é legítimo; uma superstiçãozinha cristã aqui ou ali não faz mal a ninguém.

Mas, muito em breve, Jesus será desnecessário. Os avanços da tecnologia prometem até robôs capazes de nos amar, coisa que está ficando um pouco difícil de resultar em um mundo cheio de diferenças e telas de computador para maquiá-las. Ou seja, logo, logo teremos um Jesus virtual adaptado ao nosso fardo individual, e nem precisaremos mais recorrer à bíblia ou ao Papa. Aliás, nem teremos mais fardo nenhum para carregar; carregaremos e recarregaremos apenas nosso smartphone.

Há cada vez menos motivos para sofrermos. Não, reformulo: há cada vez menos sofrimentos para nos desmotivar. Desculpe, mais uma tentativa:

Cada vez motivamos mais nosso sofrimento ao acreditá-lo reprimível e descartável.

Dói? Tome um analgésico. Sofre? Jogue um pouco de video game.

Que maravilha que a tecnologia torna possível o impossível. Mas quem torna a tecnologia possível, e por quê? A máquina, por uma questão racional, ou o ser humano, motivado por suas paixões e sofrimentos? Não houvesse braços amputados, não se inventariam mecânicos; não houvesse crises existenciais, não se desenvolveria a psicanálise; não houvesse a dor de se saber mortal, não se teria criado religiões. Nem metáforas.

As respostas que o homem cria para lidar com suas emoções são diversas. Só que a maioria não foi inventada por ele, graças a Deus! Imagine ter que inventar algo novo a cada emoção que surge! Graças a Deus, ou melhor, graças à humanidade que uma infinidade de respostas foi inventada por outros antes de nós, que também carregaram uma pesada cruz nas costas. Que também se apaixonaram a ponto de querer recomeçar a vida – ou de acabá-la. Que tiveram membros do corpo amputados e se tornaram campeões paraolímpicos.

Parece que esquecemos nossa inventividade e, pior, a confiança e a empatia pelo outro que também sofreu, inventou um caminho de superação e sobreviveu. Nos identificamos mais com o que os resultados do Google do que com o que nossos parentes e amigos têm para dizer. Do que com aquilo que uma conversa, um abraço, a música, a mitologia, tudo o que transcende a dureza da matéria, têm para ensinar.

Esquecemos que, depois da metáfora da via crucis, Jesus renasceu. Nasceu para uma nova vida. Ascendeu ao céu, a uma vida espiritual que reconhece o inevitável sofrimento humano não como fardo irrevogável, mas como oportunidade de crescimento e transformação. De deixar morrer o que pertence ao passado; plantar, recriar e cultivar o presente, para que algo ainda maior floresça.

Se a dor do sofrimento traz uma pergunta, a infinidade milenar da criatividade humana traz a grande resposta.

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